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Itacaré , Bahia, Brazil
Nesse blog, vou apresentar uma serie de estudos, textos, pesquisas e vivências que fazem parte do meu transito molecular, comumente chamado de vida. Iniciado no Budismo Vajrayana (Tibetano) aos 20 anos. Praticante de Iai do (4º Dan) .Graduado em Psicologia (UFMG - 11980) com formação em Psicologia Analítica. Socorrista (SAR) com especialização em resgate com helicóptero, em caverna e altura. Negociador junto a organizações militares em MG de suicídio com e sem armas letais, sequestro e cárcere privado. Clínica psicológica ininterrupta desde graduação. Amante da vida natural, moro em meio à Mata Atlântica na Bahia.
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quinta-feira, 21 de janeiro de 2021


O Suicídio ou a Entrada na Morte



De modo geral estamos habituados a pensar no suicídio como uma saída covarde da vida. As formas pela qual isto se dá são as mais variadas. São fartamente documentadas pela estatística criminal na forma de bilhetes, cartas, comentários, constatações, etc.

O suicídio é, ao mesmo tempo que uma saída da vida, uma entrada de alguma forma consciente para a morte.

Quero tratar aqui da morte que escolhemos, diferenciando-a da morte que vem ao nosso encontro (a morte natural, cotidiana).

Como analista, trabalhando dentro de um recinto hermeticamente fechado para o coletivo, que é o consultório, vejo desfilar à minha frente, situações e vivências, mais do que qualquer outro profissional de saúde veria. Por exemplo, um médico tem a sua frente um paciente que traz em seu corpo uma marca, um sinal, um sintoma que pode, em alguma medida ser sanado (ou não). Nesta medida, ele trata de uma manifestação exterior e, também pôr esta razão, não toma a doença do paciente como a sua doença; este é o seu “modus operandi”... O analista o faz, na medida que o processo transferência\contra-transferência é o cerne da análise.

Na análise profunda da alma, que é o que ocorre em nossa prática, esbarramos, necessariamente, com a morte e com a sua possibilidade auto-engendrada que é o suicídio. Albert Camus in The Myth of Sisyphus diz: “Não há senão um único problema filosófico sério: é a questão do suicídio. Julgar se a vida vale ou não a pena de ser vivída equivale a responder a questão fundamental da filosofia. Todo o resto... daí decorre. Esses são jogos: deve-se primeiro dar uma resposta”.

Assim é que, se desejamos aprofundar de fato a reflexão sobre o viver e defrontarmo-nos seriamente com a realidade, nos chocaremos frontalmente com a mortalidade. É somente da vida que podemos observar a morte, um morto não pode absolutamente fazê-lo. Somente quem está vivo é que pode morrer, assim sendo, consciente ou inconscientemente estamos nos debatendo com a questão última.

Nós, mortais, temos uma atitude, no mínimo insensata de encararmos a morte: nós a percebemos como alguma coisa que acontecerá na velhice, alguma coisa que pertence a um tempo distante (que exorcizamos continuadamente), alguma coisa que poderá acontecer na continuidade de uma doença. Nós a percebemos como a entrada para uma outra vida, nós não a colocamos nesta existência senão no último segundo deste existir aqui. Perdemos de vista que, na realidade, nós entramos na morte quando nascemos; a morte interessa à vida. Quando nascemos já temos idade suficiente para morrermos.

Qualquer pessoa que ultrapasse o umbral de um consultório está mobilizado pela morte em qualquer um dos seus aspectos: doença física, depressão, perda (morte) de um ente querido, uma separação, a perda de um negocio, a instalação em si mesmo de uma doença degenerativa, um acidente, e quanto ao suicídio, devemos atentar para o fato de que não existe apenas uma forma de suicídio, ou colocado de outra forma, muitos são os substitutos para o suicídio e ainda assim guardam em grande forma o seu “status”. O que seriam estes substitutos?, os acidentes, as doenças auto-imunes, as drogas, o alcoolismo, o trabalhar compulsivo. O suicídio coroa a questão se impondo diante de nós de forma definitiva e implacável. Não há o que ser dito ou interpretado no suicídio enquanto ato acabado. Ali à nossa frente não está apenas um morto, está alguém que conjurou a própria morte (cunjurare: jurar junto), está ali alguém que determinou como seria o restante de sua existência; está ali alguém que resolveu sair da vida ou resolveu entrar na morte? Não quero que sejam estas palavras tomadas como um jogo, mas que sejam vistas como a perspectiva que descortina alguém que se colocou no umbral de dois mundos, levado até ali seja pela razão que for.

A nossa tentativa de encarar o suicídio de uma maneira diferente daquela que na maioria das vezes é encarado, decorre desta participação sinistra que se dá no “temenós” formado no consultório. “Temenós” é o espaço sacralizado por um rito e que determina o ambiente onde fatos extraordinários, supranormais acontecerão. Que fatos supranormais seriam esses? São revelações, são descrições, são relatos de uma região tão próxima e tão distante qual seja a alma. O que nos vemos aqui é o desnudamento da alma do sujeito no encontro analítico. Desnudamento por um lado e contemplação pelo outro; diferente do encontro médico e/ou psiquiátrico (que é o médico que prescreve drogas para os sofrimentos da alma, ele só vê os sintomas, mas desconhece o funcionamento dos meandros da alma), que é um encontro onde se estabelece um laço de confiança e transferência apenas como acessório daquele momento em particular. Na análise profunda, entretanto, a transferência é mais que um acessório é a base do encontro, e aqui o encontro é aberto, é incondicional, sob pena de não haver a menor possibilidade da continuação da análise. Aqui ocorre o surgimento do laboratório alquímico onde analista e analisando se fundem num processo de descobertas de ambos os lados. O foco é que fica dirigido de forma natural e serena sobre a figura do analisando, mas as transformações ocorrem nos dois sujeitos de forma profunda e gradual.

Esta aliança singular a qual chamo de pacto sinistro (sinistro porque é um pacto feito às cegas, incondicional, sem nenhuma forma de restrição, sem qualquer crítica, sem qualquer julgamento de valor ou ético), e que é a base de trabalho necessária para que a vida/morte surja em todo seu esplendor. Enquanto nos encaminhamos para as profundezas da alma daquele ser que está a nossa frente, vamos nos encaminhando de forma inexorável de encontro à morte dele mesmo (e também da nossa) enquanto única certeza. Aqui, talvez, a expressão sinistro possa ser mais bem entendida, pois, no nível superficial podemos ver a morte manifesta, mas a nível profundo podemos ver a morte se insinuando, se instalando, se organizando...se cumprindo. De fato, a vida é apenas aquilo que vemos de fora, de dentro só encontramos morte acontecendo, e coisa curiosa, quando vemos a morte aqui de dentro de maneira clara, inequívoca, ela não se nos mostra mais de forma tão aterradora, passa ser apenas a vida se consumindo a si mesma, mais ou menos rapidamente, de conformidade com as deliberações tomadas por, e às vezes impostas àquele ser.

Pronto. Esbarramos finalmente na alma, que é este lugar de Luz e de Sombra. Aqui está o fundo do labirinto. Aqui reside o monstro que foi criado e  aprisionado pelas paixões, pelo orgulho, pelo amor, pelo ódio, pelos afetos, pela educação daqueles que temem a morte e que, ainda mais dramático, tem contato com a imensidão do inconsciente coletivo, lugar depositório de toda a história da humanidade desde seus primórdios. Não há como ignorarmos a presença deste inconsciente. Ele se faz presente pelos ruídos interiores, se insinua nos sonhos, aparece projetado na pessoa à nossa frente, parece estar escondido naquele canto escuro da noite. Esta é a Sombra. Esta é a dimensão mais temida e apaixonante de todo o ser. É a parte de nós mesmos que amamos e tememos com tanta ferocidade. O medo, o pânico, os receios, o pavor da morte, até mesmo o tão decantado amor tem uma predileção toda especial pôr esta região.

O suicídio é a possibilidade que está instalada na alma desde o nascimento. É a certeza que todos os seres têm, não importando etnia, crença ou religião, de poderem dispor da própria existência. No entanto não sabemos como administrar esta certeza posto que a elucidação da morte passa a pertencer à teologia e à sociedade que, aquela, baseada no exercício da fé, estabelece dogmaticamente os rituais de morte como: os últimos sacramentos, os ritos funerários e elucubrações escatológicas sobre o Céu e o Inferno, e a cultura, controlando e criminalizando tal ato por significar, em alguma medida, a falência, a morte de uma parcela de si mesma.

É necessário este nível de reflexão, ainda que confronte, num primeiro momento, com as dinâmicas sociais, religiosas, médicas e morais.  

Citando  James Hillman:  “A Teologia sempre soube que a morte é a primeira preocupação da alma. Num certo sentido, dedica-se a morte [......] A morte, entretanto, dificilmente se abre à investigação teológica. Os cânones foram estabelecidos por artigos de fé. A autoridade do sacerdócio deriva seu poder das leis que representam uma posição elaborada em relação à morte. A posição pode variar de religião para religião, mas está sempre presente. O teólogo sabe em que terreno está pisando a respeito da morte. As escrituras, a tradição e o ministério dizem-lhe porque existe a morte e o que se espera dele em relação a ela. O esteio da psicologia do teólogo, bem como sua autoridade, é sua doutrina sobre a vida-após-a-morte. As provas teológicas para a existência da alma estão de tal maneira ligadas aos cânones da morte - cânones sobre a imortalidade, o pecado, a ressurreição, o juízo final- que uma indagação direta põe em dúvida a própria base da psicologia teológica. A posição teológica , devemos lembrar, começa no pólo oposto ao pólo psicológico. Ela parte de dogmas, não de dados; parte não da experiência viva, mas cristalizada. A teologia precisa da alma para conferir uma base a seu elaborado sistema de crença sobre a morte, que é parte de seu poder. Não existisse a alma, a teologia provavelmente a inventaria, a fim de justificar as antigas prerrogativas sacerdotais sobre morte.”

Assim é que, a análise psicológica profunda, ou psicologia do inconsciente é um pensar aberto, não redutivo (tal como a psicanálise freudiana ou crenças religiosas) não fechado por nenhum dogma que seja, para que a compreensão possa se dar no ambiente de ocorrência dos mistérios profundos da alma, no fundo daquele labirinto, naquele lugar sombrio onde apenas alguns tipos de seres se aventuram: os loucos (que escorregaram para aí) e daí não saem pôr se tratar, de fato, de um lugar magnífico e passam a literalizar, a atribuir um significado real ao que está sendo visto e vivido; os heróis, pois se metem em aventuras para resgatarem princesas e quimeras, e nem sempre são bem sucedidos nesta empreitada, morrendo na maioria das vezes, no confronto com os monstros que lá residem,  mas se saem, saem renascidos, modificados e maiores pela jornada heróica necessária à individuação, os xamãs (atualmente os psicólogos do inconsciente), que são levados até lá para resgatarem alguma alma que se perdeu e pede socorro ou porque ele mesmo está em plena jornada de descoberta interior e os poetas e artistas que sentem os vapores oriundos destas profundezas  e são capazes de transformas aquelas visões em expressões de beleza inaudita...ou às vezes maldita.

 Muito bem, mas onde é que está todo mundo, todo o resto das pessoas? Elas estão aí em cima, metamorfoseadas em qualquer um dos tipos descritos, ainda que não tenham uma consciência clara disso.

Loucos são todos aqueles que teimam em não dar a medida necessária de uma determinada realidade. Assim é que o apaixonado não tem a medida para perceber a extensão da díade amorosa que o levará ao sacrifício de si mesmo. Assim é com o homicida que julga ver no outro algo que precisa ser destruído para que de alguma forma ele possa continuar vivendo. Assim é com os sacerdotes que entendem que o pecado se espalhou pelo mundo e cortou as vias de acesso com Deus e que só eles conhecem os atalhos do Paraíso.

Heróis são os que se assemelham aos “daimons”, seres intermediários entre os deuses e os loucos mortais comuns. Julgam-se acima de normas e estatutos sociais, e se igualam a deuses e demônios em outras circunstâncias. Estão sempre intoxicados pêlos vapores que vem das profundezas do labirinto, e assim, ficam inflacionados pôr uma visão supra racional da realidade e precisam encetar jornadas que os conduzam ao encontro do si mesmo e que depois retornam para atuar como agentes modificadores de sua sociedade.

Os xamãs/psicólogos são aqueles que, necessariamente, já passaram pêlos dois estágios anteriores e guardam com cuidado, as marcas trazidas daquelas jornadas, sem se jactarem de seus achados e experiências, guardando, isto sim, um silêncio profundo, onde na maioria das vezes, todos estão gritando seus feitos.

Assim é a jornada pelo reino da morte, que é a vida no seu aspecto mais profundo, íntimo e último. Um autor,  uma vez descreveu a morte como o último capítulo da vida, eu digo que a morte é o ÚNICO capítulo da vida. A vida é o que acontece enquanto se morre. 

De que perspectiva podemos então olhar para o suicida?

Qual é o paradigma que nos ajuda na elucidação de tal feito?

A análise médica e criminal esclarece o como. A análise estatística distribui este como geopoliticamente. Tudo sugere que é na análise da alma que poderemos encontrar respostas, senão indagações colocadas de uma vertente nova, a fim de termos uma visão mais coerente do fenômeno que ora tratamos aqui e que não é absolutamente, nem sintoma, nem síndrome, mas apenas um ato possível dentro do ser, e que, no entanto, nos deixa perplexos porque impotentes diante do morrer do outro, como também porque nos relembra de que aquele principio de morte está dentro de nós a todo o momento.

Haveremos que lembrar que sempre somos desconhecidos de nós mesmos, e carregamos dentro de nós uma multidão de “eus” já que o caráter (Xarater = sêlo, grego)está perdido.

Pôr um momento deveríamos deixar de lado qualquer conceituação jurídica, teológica, social, estatística, moral, médica do suicídio e tentarmos vê-lo como parte integrante do existir. De fato, o suicídio é o único problema existencial sério, pois, coloca a morte não na mão do destino ou de deuses, mas na mão do próprio indivíduo. Passa a ser parte integrante da bagagem (do Phortion = mochila, bagagem pessoal, grego) do sujeito vivo e, com certeza, a morte se instala enquanto fenômeno necessário, complementar, no momento mesmo do nascimento.

Deveríamos buscar auxílio no estudo de crenças e religiões comparadas, no estudo dos mitos e dos povos arcaicos ou que vivam hoje, fazendo uso cotidiano e como absolutamente indispensável, de rituais pertencentes à sua tribo, a seus antepassados.

Deveríamos submeter-nos a uma análise profunda, rigorosa, sistemática de nós mesmos e buscarmos ouvir e compreender o grito/sussurro da morte, dos rituais, dos mitos que nos permeiam.

Em sociedades onde existem e são praticados ritos de iniciação das várias etapas da vida e da experiência da alma, não encontramos o suicídio como o encontramos nas sociedades civilizadas. Não encontramos nem mesmo, algumas formas de crimes como conhecemos pôr aqui. Nem mesmo as chamadas doenças mentais

Proponho uma reflexão profunda no sentido de que a ausência de rituais coletivos, rituais tribais, rituais domésticos e individuais ou seja, a ausência de um mito moderno contribuem para o surgimento dos crimes em seus vários aspectos e modalidades. Sugiro mesmo, que o suicídio atual é um salto desesperado da alma ao encontro das regiões onde residem os mistérios que são a ela (alma), tão queridos, indispensáveis e inseparáveis, e não, necessariamente, uma saída de situações conflitantes da vida.

Proponho ainda, uma real investigação dos mitos e rituais como uma necessidade absoluta da alma se organizar até o encontro primordial com seus seres ancestrais, illo tempore.

Na medida que a alma não se situa, não encontra uma ordem, (que é dada através dos rituais, uma reatualização dos mitos), ela promove uma desordem interior e ao redor, promovendo a possibilidade de surgimento do pseudo hierofante, do pseudo arauto dos mistérios, que é substituído em nossa civilização pelo juiz, pela autoridade, principalmente pelos políticos, pelo médico clínico que, não conhecendo os mistérios e nem são, pôr sua vez, iniciados, se limitam tão somente a dar uma resposta, uma ordem (aparente) ao caos, mas não promovem uma significação do fenômeno nem mesmo arranham o seu real entendimento, como esta aí demonstrado pela história caótica dos nossos tempos. Os traficantes, os atuais iniciadores nos mistérios das drogas hoje são os substitutos mais eficientes dos hierofantes (aqueles que anunciam os mistérios, em grego) e os políticos canhestros que se autointitulam os promotores da Ordem e da Moral Social (triste fado).  Estaria aí uma vertente de estudo do porque de tal atrativo fornecido pelas drogas, pelas políticas desvairadas, pelas redes sociais? 

     Eu defino droga, para estes efeitos, tudo aquilo usado para além dos limites necessários e tolerados, desta forma, qualquer compulsão tem uma característica de drogadicção.

Atrevamo-nos, pois, a conhecer profundamente, aquilo que temos conhecido de forma superficial e leviana: A Morte Cotidiana e seu séquito.

  

Marcus Vinicius Moreira de Assumpção

Outono de 1995