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Itacaré , Bahia, Brazil
Nesse blog, vou apresentar uma serie de estudos, textos, pesquisas e vivências que fazem parte do meu transito molecular, comumente chamado de vida. Iniciado no Budismo Vajrayana (Tibetano) aos 20 anos. Praticante de Iai do (4º Dan) .Graduado em Psicologia (UFMG - 11980) com formação em Psicologia Analítica. Socorrista (SAR) com especialização em resgate com helicóptero, em caverna e altura. Negociador junto a organizações militares em MG de suicídio com e sem armas letais, sequestro e cárcere privado. Clínica psicológica ininterrupta desde graduação. Amante da vida natural, moro em meio à Mata Atlântica na Bahia.
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quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

A REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE

 
A percepção, como vimos, tem sido considerada como a base da cognição e deve ser verídica e pessoal. É um dos requisitos mais elementares para percebermos o mundo e conseguirmos um ajustamento realista a ele.

Este ajustamento realista exige mais do que o reflexo fisiológico dos equipamentos sensoriais; exige satisfazer nossas necessidades, encontrar alguma segurança, explorar as oportunidades para o crescimento e, conseqüentemente, encontrar um sentido satisfatório para a nossa existência.

O conjunto de elementos capazes de nos fazer perceber o mundo de acordo com nossa aptidão pessoal capacita-nos à uma visão mais diferenciada da realidade, oferece uma percepção que ultrapassa àquela simplesmente oferecida pelos órgãos dos sentidos.  

Através dos órgãos dos sentidos os objetos se nos apresentam corporalmente, objetivamente e, nas representações internas elaboradas pelo eu, apresentam-se como imagens. Portanto, a imagem deve ser sempre interior e ter sempre uma concepção individual, porém, apesar de individual, a imagem jamais deve ser emancipada da realidade. Soltando-se da realidade, de forma a produzir um mundo objectual novo e particular, estaremos incorrendo no domínio dos delírios e das alucinações.
Saber porque algumas pessoas se desesperam, se angustiam ou até se suicidam diante de fatos ou vivências que outras pessoas suportariam de forma diferente diz respeito, em parte, às diferenças entre como as coisas são de fato, e o que elas representam para cada um de nós. Portanto, saber um pouco sobre as diferenças entre a realidade externa a nós e a representação interna dessa mesma realidade poderá facilitar a compreensão das diferenças entre o mundo objetivo e o mundo subjetivo.

A nossa cultura registra em Platão (427-374 AC) a primeira reflexão sobre uma nova espécie de realidade experimentada pelo ser humano e que não corresponde exatamente à realidade objetivamente verdadeira: trata-se da realidade psicológica. Santo Agostinho (354-430 d.C.), considerado um grande estimulador dos recentes movimentos existencialista e até da psicanálise, inspirou sua obra na realidade das experiências interiores do ser humano, propondo a idéia de que os sentimentos são dominantes e que o intelecto é seu servo. Em seu livro Confissões, Santo Agostinho foi o primeiro a centralizar-se na introspecção psicológica, sugerindo também, uma completa revisão do pensamento anterior, segundo o qual o raciocínio dedutivo era o único instrumento de constatação da verdade e da realidade (racionalismo). Ele negava, categoricamente, a capacidade do ser humano para encontrar a verdade confiando apenas em suas próprias faculdades.

John Locke (1632-1704), filósofo do século XVII, acreditava também na existência de duas realidades: uma delas conferida pela percepção dos objetos e denominada experiência exterior e uma outra, determinada pela percepção dos sentimentos e desejos, a que chamou de experiência interior. A doutrina de Locke foi muito bem desenvolvida por Berkeley (1685-1753) e por David Hume (1711-1776), os quais concluíram que nenhum conhecimento absoluto é possível, e aquilo que sabemos da realidade é baseado na experiência subjetiva (experiência interior), a qual não reflete necessariamente o quadro verdadeiro do mundo. Wilian James (1842-1910), no século passado, enfatizou a natureza altamente pessoal dos processos de pensamento e o caráter sempre mutável das percepções do mundo, alteradas que são pelo estado subjetivo da pessoa que percebe.

Portanto, já que a concepção da realidade é baseada na experiência subjetiva e, sendo esta capaz de conferir uma natureza altamente pessoal à percepção do mundo e aos pensamentos, então a realidade percebida decorrerá sempre do estado subjetivo do indivíduo. Cada consciência, em particular, integra e totaliza de maneira muito peculiar o seu relacionamento com o mundo. Desta forma, os fatos oferecidos pelo mundo objectual à nossa volta resultarão numa representação única e individual para cada um de nós, e será esta representação que constituirá a realidade particular de cada indivíduo.

As representações são construídas pelas imagens dos objetos e dos fenômenos percebidos nas experiências anteriores e evocadas de modo voluntário ou involuntário. São entendidas, as representações, como um ato de conhecimento conseqüente à reativação de uma lembrança ou de uma imagem mnêmica sem necessidade da presença real do objeto correspondente. Para que este conceito (que é também o conceito de cognição) não fique reduzido ao fenômeno da memória, como a grosso modo poderia parecer, podemos comentá-lo mais amiudemente.

O que existe, em psicodinâmica, ou é o indivíduo ou é o não-indivíduo, em outras palavras, tudo o que não é o sujeito é o objeto. Tudo o que estiver fora de mim será, para mim, o objeto (mundo objectual), em contraposição à “eu mesmo”, que sou o sujeito. Entendemos por imagens dos objetos e dos fenômenos percebidos nas experiências anteriores, toda impressão que o contacto com a realidade pode produzir no indivíduo.


REPRESENTAÇÃO, APERCEPÇÃO E PROCEPÇÃO


Portanto, a representação da realidade, daqui em diante chamada apenas de REPRESENTAÇÃO, transcende significativamente a simples percepção do mundo; é aquilo que o mundo passa a representar para a pessoa depois de nela introjetado ou por ela apreendido. Desta forma, enquanto o caráter da SENSOPERCEPÇÃO é melhor entendido predominantemente a nível do fisiologismo neuro-sensorial, através dos cinco sentidos, a REPRESENTAÇÃO reporta-se predominantemente à subjetividade da realidade, e é revestida de uma tonalidade afetiva particular do indivíduo, portanto, a nível afetivo-psicológico. Uma simples rosa pode ser percebida fisiologicamente através da visão, tato ou olfato, porém, será ricamente representada através do subjetivismo da pessoa. Pode até ser dispensável nesta representação, a presença física do objeto rosa. Da mesma forma, a palavra mãe, por exemplo, que pode ser percebida pela visão, se for escrita ou pela audição, se for falada, terá sua representação interna tocada pela afetividade e jamais será igual entre as pessoas.

O texto de Jung é bastante explicativo: "parece que o consciente flui em torrentes para dentro de nós, vindo de fora sob a forma de percepções sensoriais. Nós vemos, ouvimos, apalpamos e cheiramos o mundo, e assim temos consciência do mundo. Estas percepções sensoriais nos dizem que algo existe fora de nós, mas elas não dizem o que isso seja em si. Esta é tarefa não do processo perceptivo, mas do processo de APERCEPÇÃO. Este último tem uma estrutura altamente complexa. Não que as percepções sensoriais sejam algo simples, mas a sua natureza é menos psíquica do que fisiológica. A complexidade da apercepção, pelo contrário, é psíquica".

Portanto, Jung identifica a REPRESENTAÇÃO da qual falamos, com a APERCEPÇÃO, algo responsável pela significação da coisa ou do que é a coisa em si. Neste caso, se a essência das coisas é determinada mais pelo pensamento e emoção que pela percepção neurológica, esta (a essência das coisas) será sempre pessoal e individual, então o significado essencial das coisas será igualmente pessoal e individual.

Allport é outro autor preocupado com a questão da representação do mundo. Para ele, o que Jung chama de APERCEPÇÃO é tratado com o nome de PROCEPÇÃO: mais um sinônimo para REPRESENTAÇÃO interna. Diz-nos, Allport, que "existir como pessoa significa ultrapassar o verídico e o cultural, bem como desenvolver a própria visão do mundo. Em cada momento cada um de nós realiza, à sua maneira, a sua transação entre o Ego o mundo. Seria impossível enumerar todos os amplos tipos de orientação proceptiva que servem para distinguir os homens entre si. Uns têm uma mentalidade dominante para o passado, outros para o presente e alguns para o futuro. Para alguns o mundo é um lugar hostil, os homens são maus e perigosos; para outros é um palco para folias e brincadeiras".

Mesmos fatos, mesmas situações e mesmos acontecimentos podem ser experimentados por um número infindável de pessoas e representados por infindáveis maneiras. A guerra, por exemplo, onde participam milhares de pessoas, pode representar uma coisa diferente para cada um; embora seja traumática para a expressiva maioria das pessoas que dela participa, será mais traumática para os que neurotizam, demasiadamente traumática para os que psicotizam, apenas desagradável para alguns, e até boa para os vencedores e para os fanáticos, e assim por diante... Enfim, cada personalidade apercebeu-se da guerra de uma maneira completamente diferente.

Perceber a realidade exatamente como ela é tem sido uma tarefa totalmente impossível para o ser humano. 

Nós nos aproximamos variavelmente da realidade, de acordo com nossas paixões, nossos interesses, nossas crenças, nosso acervo cultural, etc. Algumas atitudes mentais favorecem um contacto mais íntimo com a realidade, outras afastam deste contacto. Será muito difícil para uma pessoa perdidamente apaixonada, elaborar um correto julgamento acerca da personalidade de quem ama. Normalmente, nestes casos, a força da paixão turva a avaliação do objeto amado. Da mesma forma, a realidade que um botânico experimenta diante de uma orquídea certamente será diferente da realidade experimentada pelo poeta diante da mesma orquídea. A realidade do indígena é plena de determinados deuses ausentes na nossa, assim como nossos micróbios não participam da realidade deles e assim por diante.

Embora a representação do real seja particular em cada um de nós, como dissemos, esta compreensão do mundo objectual percebido e introjetado deve ser organizada segundo as regras comuns de um mesmo sistema cultural e, desta forma, tornar possível a convivência e a comunicação entre as pessoas de uma mesma cultura. Este sistema sócio-cultural que reconhece o direito da APERCEPÇÃO (ou PROCEPÇÃO, ou REPRESENTAÇÃO) particular de cada um de nós, também estabelece uma determinada faixa de compatibilização entre os indivíduos, onde as diversas maneiras de experimentar e sentir o mundo não comprometa a viabilidade da vida gregária. A esta faixa de congruência sugerimos chamar de CONCORDÂNCIA CULTURAL. Ou seja, um conjunto de valores, normas e modelos capazes de definir um determinado grupo cultuou seja, um conjunto de valores, normas e modelos capazes de definir um determinado grupo cultural e identificar os indivíduos de um mesmo sistema mediante um contacto mais ou menos consensual com certos aspectos da realidade.

Assim sendo, as infinitas variações pessoais na representação da realidade devem, apesar de infinitas, manter-se dentro da concordância cultural para serem consideradas normais. Seria como a infinita variação das impressões digitais. Mesmo diante da infindável variedade entre todas impressões digitais, há alguma concordância entre elas. No momento em que nos defrontamos com impressões digitais formadas por linhas retas e paralelas, ou regularmente quadradas e concêntricas, certamente estaremos diante de impressões digitais anormais.

Bandler afirma haver uma irredutível diferença entre o mundo e a nossa experiência sobre o mesmo. O pensamento, em seu desenvolvimento espontâneo, tem uma necessidade imperiosa de emancipar-se da realidade dos fatos apresentados pelos nossos sentidos. Seria este, o mais importante e brilhante mecanismo responsável por nossa capacidade de abstração e de criação. Sem ele, a espontaneidade e a liberdade estariam irremediavelmente comprometidas. Existir como pessoa significa ultrapassar o verídico e o cultural, desenvolver uma concepção interior do mundo com características próprias, porém, mantendo-se sempre razoavelmente ligado a uma realidade recomendada pela concordância cultural. Como diz o ditado, "A aventura pode ser louca, o aventureiro, porém, necessariamente dever ser lúcido".

A capacidade da pessoa ser ela mesma está em seu esforço (e em seu sucesso) em compatibilizar o seu mundo interior com a realidade externa, controlar seu mundo de forma a viver nele dominando-o de maneira realística. Existe uma parcela de nossa consciência que é emancipada da objetividade exclusiva dos fatos e do mundo dos sentidos, uma parte que nos torna únicos na maneira de ser e sentir o mundo. Existe também, uma outra parcela da consciência que nos identifica a todos como membros de um mesmo sistema sócio-cultural, compatível com uma concordância coletiva e consensual. Allport facilita esta situação ao sugerir a PROCEPÇÃO INDIVIDUAL e a PROCEPÇÃO CULTURAL. Esta última representa o depositário das respostas culturalmente atreladas em nossa personalidade, respostas culturais a determinados fatos vividos. A poligamia, por exemplo, é diferentemente representada pela cultura cristã ocidental e pela cultura islâmica oriental.

Resumindo, podemos dizer que todo ser humano tem uma maneira peculiar e muito pessoal de representar a sua realidade, e faz isso com um arbítrio suficiente para libertá-lo do estreito mundo dos sentidos. Por causa disso ele é capaz de criar, abstrair, pensar além do real e sonhar. Entretanto, mesmo diante desta diversidade representativa, mesmo respeitando sua liberdade ao irreal, está o indivíduo atrelado à concordância cultural de seu meio e, esta, funcionando como uma faixa de tolerância onde deverão situar-se as infindáveis maneiras de representar a realidade.

 

CONSTRUINDO A REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE


A representação da realidade, de fato, repousa na capacidade da pessoa atribuir valores à realidade, isso é o mesmo que construir uma concepção ontológica individual do real. Segundo o filósofo Nicolai Hartmann, existiriam quatro categorias de valores possíveis de atribuir-se à realidade no sentido de construir-se uma representação pessoal da existência. Seriam os valores materiais, vitais, anímicos e espirituais. Cada uma dessas categorias necessitaria da anterior para existir e cada uma delas procura se emancipar da anterior.

   Para estudarmos as Alterações da Representação, como propõe esse capítulo, teríamos que avaliar as eventuais alterações nessas quatro categorias de valorização do real. Sendo quatro as categorias e, portanto, quatro possibilidades de variação, sendo que dentro de cada uma dessas quatro categorias existem mais uma variedade de possíveis alterações, não é fácil (nem lícito) simplesmente listar uma série de condições psicopatológicas onde haveria as tais Alterações da Representação. Temos que pensar em cada uma delas separadamente e, num segundo momento, procurar elaborar uma idéia que integrasse todas as inúmeras variáveis na maneira de valorizarmos o real. Como se vê, trata-se de algo muito complexo.


Categoria Material de Valorizar a Realidade


Com a categoria material nos referimos ao corpo, ao fisiologismo da senso-percepção, ao componente neuro-psico-biológico tão necessário para o contacto primeiro com o mundo que nos rodeia. Construir a realidade a partir do orgânico humano implica na integridade dos órgãos dos sentidos, na integridade das vias nervosas sensitivas, na integridade do Sistema Nervoso Central (SNC) e, principalmente, na capacidade integradora desses estímulos no SNC. Estamos falando das habilidades sensoperceptivas e de suas variações, assunto mais amiudemente estudado em Percepção e Realidade.

A representação da realidade, baseada na categoria material de conhecer o mundo, se dá através da percepção que a pessoa tem anteriormente à realidade consciente, através dos estímulos que apreendemos pela primeira vez, em seguida se dá através da transformação dessa percepção em realidade consciente e, por fim, através das percepções posteriores à realidade consciente, onde entram em ação as capacidades mnêmicas e integradoras do SNC.


Categoria Vital de Valorizar a Realidade


A pessoa aqui e agora pode ser entendida como uma resultância daquilo que ela trouxe ao mundo com aquilo que o mundo lhe deu (fenótipo = genótipo + ambiente). Para a categoria vital de valorizar a realidade interessa aquilo que a pessoa trouxe ao mundo, seu perfil vital. Kurt Schneider se utilizou desse sistema em sua Psicopatologia para apoiar a idéia das Depressões Vitais, dentro das Alterações Depressivas do Humor. Através desses sentimentos vitais a realidade se apresentaria além da situação real e da situação imaginária.

O estado depressivo baseado na situação real seria, por exemplo, uma Depressão Reativa, um Transtorno de Ajustamento com sintomas depressivos ou uma Reação Pós-Traumática ao Estresse. O estado depressivo que valoriza situações imaginárias estaria, por exemplo, na Neurose Depressiva ou, como se prefere atualmente, nos casos de Distimia mais leves ou no Episódio Depressivo Leve. Nos sentimentos vitais se encaixariam as depressões do Episódio Depressivo Grave ou Moderado e as Distimias mais graves (dupla depressão, etc.), onde sobressai o elemento constitucional.

Fossemos adequar essa categoria vital de valorizar a realidade na teoria junguiana, possivelmente encaixaríamos aqui os tipos psicológicos introvertidos. São pessoas que se relacionam centripetamente com o mundo objectual, apreendem os objetos, recebem a realidade mais apaticamente, complacentemente, se deixam impressionar pelo mundo objectual, ou seja, são o contrário dos extrovertidos, centrífugos, que se deslocam e influenciam o mundo objectual.


Categoria Anímica de Valorizar a Realidade


   Considerando o que foi dito antes sobre a pessoa aqui e agora ser entendida como uma resultância daquilo que ela trouxe ao mundo com aquilo que o mundo lhe deu (fenótipo = genótipo + ambiente), para a categoria anímica de valorizar a realidade interessaria a pessoa aqui e agora (fenótipo). O humor, responsável por esse tipo de valorização do real, seria o perfil afetivo atual, o qual guarda em seu bojo elementos constitucionais modelados pelo destino. Vale aqui o ditado segundo o qual "cachorro mordido de cobra tem medo de lingüiça".

   Avaliar a realidade sob o ponto de vista anímico implica em impregná-la com a tonalidade afetiva da personalidade, entendendo-se por personalidade uma constituição dinamicamente atualizada. Enquanto a categoria vital confere uma maneira perene e continuada de valorizar o mundo, a categoria anímica é dinâmica. Exemplo disso são as mudanças de valores durante a vida de uma pessoa.

   Pequenas variações anímicas se dão ao longo dos dias ou das horas, grandes e sólidas variações anímicas se dão ao longo dos anos. Fossemos adequar essa categoria anímica de valorizar a realidade na teoria junguiana, possivelmente estaríamos falando da reversão das fases natural para a fase cultural da pessoa onde, depois de aproximadamente 30 anos para mulheres e 40 para os homens, os valores sofreriam grande e substancial alteração; muito daquilo anteriormente importante deixa de sê-lo e vice-versa.

   Para a psicopatologia interessaria aqui as alterações baseadas nas situações reais e nas situações imaginárias comentadas mais acima.

Categoria Espiritual de Valorizar a Realidade

Avaliação espiritual da realidade é aquela que mais se afasta da objetividade dos fatos, assim como teria tendência em afastar-se das influências sensitivas, vitais e anímicas sobre a realidade. Entretanto, essa irreverência espiritual para com a realidade objetiva não se trata de uma realidade fantasiosa própria do mundo mágico da criança. Trata-se, sim, de um especial encontrar de significações para a vida, para a existência e até para o não existir mais.

   Alguns pensadores atribuem à categoria espiritual de valorizar a realidade os elementos relacionados à Angústia Existencial. Esta será patológica na medida em que se traduz em ansiedade antecipatória à sensação de abismo, solidão, desconhecida... Os sentimentos espirituais são aqueles que tendem para a valorização intelectual, estética, moral e religiosa.

   A categoria espiritual de valorizar a realidade diz respeito ao modo de ser e de vir-a-ser no mundo, bem como avalia a relação entre o ser e a vida. É aqui que se polariza a questão existencial mais importante do ser. Esta base de sustentação existencial deveria proporcionar conforto e bem estar, entretanto, na sua falta ou enfraquecimento, a ansiedade torna-se opressora, a angústia se exacerba e há retorno para categorias inferiores de valorização da realidade. Volta-se a questões afetivas, constitucionais ou exclusivamente materiais.

   O desenvolvimento da valorização espiritual pode, com freqüência, atenuar alterações mórbidas determinadas pelas outras categorias inferiores e, em casos psicopatológicos, pode determinar profundos sentimentos depressivos, tendo como pano de fundo a angústia patológica. Evidentemente trata-se, a valorização espiritual, da maneira mais eficiente para a adaptação do ser ao seu mundo e à sua vida e, ao contrário, nas psicopatias capazes de corromper esta categoria, como é o caso das psicoses, há as mais contundentes desadaptações existenciais.


A REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE

 EMOÇÕES E SENTIMENTOS


   Inicialmente, há necessidade de especificar o que são Emoções e o que são Sentimentos. 

   Emoções são complexos psicofisiológicos que se caracterizam por súbitas rupturas no equilíbrio afetivo de curta duração, com repercussões consecutivas sobre a integridade da consciência e sobre a atividade funcional de diversos órgãos. 

   Sentimentos são estados afetivos mais duráveis, mais atenuados em sua intensidade vivencial que as emoções, geralmente revestidos de ricas e nobres tonalidades intelectuais e morais e não acompanhados, obrigatoriamente, de correspondentes somáticos dignos de nota. Admite-se que os sentimentos possam provir das emoções que lhes são cronologicamente anteriores e com as quais guardam correlações compreensíveis, quanto aos seus conteúdos respectivos.

   As emoções podem ser divididas em: Primárias, Secundárias, Mistas e Espirituais, conforme vão se afastando da sensação e se aproximando da espiritualidade.

Emoções Primárias

São assim chamadas em razão de serem inatas e por estarem diretamente ligadas à vida instintiva, à sobrevivência. Entre elas temos a Emoção de Choque – é a chamada reação catastrófica de Goldstein, caracterizada por espanto ou susto e desencadeadas por situações que representam ameaça evidente. Haverá concomitante contração generalizada dos músculos flexores, sendo possível adotar-se uma atitude regressiva fetal, vasoconstrição periférica, palidez da face e esfriamento das extremidades, com brevíssima parada dos movimentos respiratórios e dos batimentos cardíacos, logo seguida de aceleração compensadora. Pode haver atitude de pânico, ora com tendência à fuga desatinada, ora com imobilidade.

   Temos ainda, entre as primárias, a Emoção Colérica. Acontece como uma atitude dirigida à anulação de um objeto representado como incômodo, contrário à inclinação natural ao prazer. Há, neste caso, reação agressiva contra o estímulo externo responsável pelo desconforto ou contrariedade.

   Finalmente temos a Emoção Afetuosa. Trata-se de uma expressão de tranqüilidade e bem-estar, com tendência à lassidão, seguida de ampliação dos movimentos respiratórios e redução numérica dos batimentos cardíacos, desencadeada em reação ao apreço para com algum objeto ou situação que representa o prazer. É uma inclinação de fusão do eu com o mundo, ou no mundo. Essas são três primárias, integrantes do patrimônio afetivo básico ou original. As duas primeiras se acham a serviço da sobrevivência individual e, portanto, ligadas ao instinto de conservação, ao passo que a última relaciona-se com a inclinação ao prazer.

Emoções Secundárias

São estados afetivos de estrutura e conteúdos mais complexos que as primárias. Na realidade as Emoções Secundárias, embora levem o nome de "emoções", já se constituem em Sentimentos Sensoriais e que se apresentam, sob duas formas especiais.

Os Estados Afetivos Sensoriais, que correspondentes aos sentimentos sensoriais intimamente relacionados às sensações de prazer e dor, as quais têm por sede ou ponto de partida a nossa sensibilidade corporal. Os Estados Afetivos Sensoriais acabam proporcionando estados afetivos agradáveis e desagradáveis.

   Mas não há dúvida de que a abrangência dos estados afetivos agradáveis e desagradáveis é, na realidade, bem mais ampla que as sensações do prazer e da dor, na acepção sensorial. Os Estados Afetivos Sensoriais já implicam numa representação mais íntima de prazer ou desprazer. O amargo, por exemplo, é desagradável, sem ser necessariamente doloroso, o mesmo podendo suceder com as sensações de fome, calor, frio, sede, etc. Aspirar um fino perfume, ouvir um belo trecho melódico ou contemplar deslumbrante panorama são representações agradáveis, sem que constituam prazeres somáticos propriamente ditos, isto é, mais ou menos localizáveis em algumas partes do nosso corpo.

   Em segundo lugar, as Emoções Secundárias comportam os Estados Afetivos Vitais. Correspondem aos sentimentos vitais de Scheler, e compreendem aquilo que se experimenta como mal-estar, bem-estar, animação, desanimação, etc. Embora sejam representados por estímulos corporais bem pronunciados, são diferentes dos sensoriais por não estarem ligados a excitações localizadas em partes do corpo. Assim, pois, os Estados Afetivos Vitais são atitudes internas, positivas ou negativas, relacionadas a sensações vagas e difusas. São sentimentos orgânicos que emprestam coloridos específicos a determinados estados orgânicos.

   Os Estados Afetivos Vitais e Sensoriais podem se alterar nas atitudes neuróticas, onde as sensações orgânicas sofrem a influência dos afetos, que acabam por se converter numa linguagem especial do indivíduo para si mesmo e para os outros. É o que se verifica nos hipocondríacos, nos histéricos, etc. O mesmo ocorre em certos estados de êxtase místico e no faquirismo, por exemplo.

Emoções Mistas

   Emoções mistas são aquelas que envolvem mesclas de estados afetivos internos contrastantes e já se distanciam do sensível orgânico. Por estados afetivos contrastantes queremos dizer um "conflito emocional" consciente, com maior ou menor repercussão na conduta individual. Estas se compõem de estados afetivos de conteúdos vários e opostos, sem sistematização específica, caracterizando uma representação da realidade sob o ponto de vista da angústia existencial ou, algumas vezes, da angústia patológica.

Sentimentos Anímicos e Espirituais

   De acordo com a terminologia utilizada por Max Scheler, sentimentos anímicos são estados afetivos concebidos como qualidades do eu e dotados de intencionalidade do eu para com o objeto, ou seja, do eu em relação ao mundo dos valores. São exemplos de sentimentos anímicos a tristeza e a alegria, o amor e o ódio, a felicidade e o desespero, etc., referem-se a acontecimentos, objetos, coisas, pessoas, enquanto veículos de valor, positivo ou negativo.

   Os sentimentos espirituais tendem para os valores absolutos, tais como os valores intelectuais, estéticos, morais, religiosos, não mais concebidos exclusivamente como qualidades do eu, portanto, não mais inerentes à estruturação do sistema de valores relativos ou individuais.


Das Emoções aos Sentimentos


   Os sentimentos são atenuados em sua intensidade vivencial e em seus concomitantes fisiológicos (viscerais, vasomotores, secretórios, etc.) em comparação à exuberância das emoções. Intimamente entrelaçados com as sensações e as emoções, na dinâmica da vida psíquica total, os sentimentos se mostram muito mais duradouros, além de infinitamente mais numerosos e variados que os estados afetivos básicos dos quais se originam. Assim, da emoção primária de choque-pânico, provém emoções mistas (espanto, susto, terror. . .) e, destas, os sentimentos de insegurança, desconfiança, receio, medo, etc.; da emoção colérica, resultam vivências emocionais impulsivo-agressivas, bem como sentimentos de vingança, ódio, rancor, crueldade . . . ; da emoção afetuosa, originam-se reações emocionais de envaidecimento e auto-estima e sentimentos de simpatia, cordialidade, compaixão, amizade, amor, sob todas as suas formas (de pessoa a pessoa, à família, à pátria, a Deus, à Ciência, à arte, à liberdade, à humanidade, etc.); enfim, das emoções secundárias, de desprazer e mal-estar, de um lado, e de prazer e bem-estar, do outro, também, derivam, respectivamente, sentimentos de pesar, tristeza, desgosto, asco, aversão, desespero. . . ; bem como os sentimentos de júbilo, alegria, esperança, satisfação, felicidade, etc.

   A afirmação juvenil da sexualidade e o processo de integração social do adolescente proporcionam rejeição de muitos valores instituídos na infância, levando à adoção e introspecção de valores novos, que alteram profundamente o sistema referencial do indivíduo (sistema de valores) ampliando e enriquecendo, cada vez mais, a sua vida afetiva e, por fim, favorecendo o desenvolvimento dos chamados sentimentos espirituais. Estes últimos imprimem a feição final ao quadro afetivo geral da psique humana e constituem, a bem dizer, a principal característica de nossa espécie. Esses sentimentos (valores) espirituais permitem ao homem, com exclusividade, elevar-se continuamente no plano das idéias, dos juízos e dos atos e, com isso, caracterizar a totalidade de seu comportamento social. O característico dessa categoria de sistema de valores espirituais é que eles sempre se referem, não propriamente a pessoas, coisas, objetos, portadores de valores intrínsecos, mas à qualidade do que é ou não é valioso, do que é verdadeiro ou o falso, belo ou o feio, bom ou o mau, sagrado ou o profano. ..

   A REPRESENTAÇÃO da realidade, então, determinará a significação das coisas no âmbito de cada camada afetiva (Primárias, Secundárias, Mistas e Espirituais). Isso não quer dizer que essas categorias sejam herméticas ou estanques. Elas funcionam de maneira integrada e, por causa dessa integração, os conteúdos tímicos provenientes das camadas sensorial e vital, podem alcançar as camadas mais espirituais e vice-versa. Nada, em nosso mundo interior, se encontra em estado estático, de isolamento e de pureza elementar, mas sim, tudo se encontra de forma dinâmica e integrada.


REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE

EMOÇÕES


O fisiologista Cannon pesquisava sobre as finalidades adaptativas das emoções mediante modificações somáticas. Ao contrário, seu colega Pierre Janet não atribuía às emoções as atitudes e condutas adaptativas, mas sim aos sentimentos. Ao seu ver, as emoções desorganizariam a conduta. O terror-pânico (emoção), por exemplo, compromete profundamente todas as defesas racionais possibilitadas pelo temor-receio-prudência dos sentimentos. Apesar disso, Janet reconhecia que algumas emoções possuem, de fato, finalidades adaptativas. Neste caso podemos supor que algumas emoções podem corromper a REPRESENTAÇÃO da realidade mais do que os sentimentos.

   Jean Paul Sartre sustenta a concepção de que as emoções representam uma resposta a determinadas situações e são, por isso, dotadas de sentido, pouco importando, a seu ver, se tal resposta é inadequada, ilógica, contraditória ou absurda, pois a emoção não tem por objetivo a real adaptação do ser vivo às circunstâncias, podendo inclusive ser nociva e até mesmo fatal à sua existência. Assim, o desmaio ante um perigo iminente será um paroxismo emocional que acaba privando o indivíduo de toda e qualquer possibilidade de defesa racional. Trata-se aí, no dizer de Sartre, de um recurso mágico mediante ao qual, na impossibilidade de eliminar o perigo, suprime a consciência de sua presença e de sua significação no indivíduo. É, portanto, uma emoção que, não apenas altera, mas, suprime substancialmente e contundentemente a REPRESENTAÇÃO da realidade.

   Ainda sobre as emoções de pânico-terror, poderíamos dizer que elas conduzem à sintomatologia da Síndrome do Pânico por valorizar indevidamente como ameaçadora uma realidade originariamente não hostil, da mesma forma como a emoção de medo fóbico faz representar como estressante estímulos essencialmente inofensivos. Esses exemplos mostram o prejuízo adaptativo de determinadas emoções.

   Tendo em vista a colocação sartreniana de que as emoções representariam uma resposta a determinadas situações, podemos supor, por exemplo, que as emoções de medo fóbico, ansiedade exagerada, pânico e terror seriam, pois, respostas à determinadas situações. E que situações seriam estas? Talvez pudéssemos pensar em situações internas à pessoa, situações afetivas capazes de propor emoções tal como se tratasse de situações externas. Conflitos e alterações afetivas podem se encaixar nessas condições internas.


Representação da Realidade

Inclinações e Paixões


   As inclinações são movimentos afetivos involuntários, duráveis, contínuos, persistentes, em direção a determinado objeto. Esses movimentos de apetência seletiva emergem de disposições extraconscientes, isto é, das tendências instintivo-afetivas latentes, as quais lhes dão força, sentido e unidade dinâmica, com ou sem repercussões sobre a motilidade e a conduta. São diferentes das ações impulsivas incoercíveis e das atividades instintivas brutas por comportarem, as inclinações, certa representação na consciência e por suportarem mais eficazmente esforços de contenção de suas manifestações.

   O termo paixão, como se fosse o outro lado da moeda das inclinações, designa um estado afetivo mais agudo, absorvente e tiranizante que estas. A paixão polariza a vida psíquica do indivíduo na direção de um objeto único, o qual passa a monopolizar os pensamentos e as ações, com exclusão ou detrimento de tudo mais. As inclinações e as paixões procedem da mesma esfera de tendências instintivo-afetivas, que formam a base da organização biopsicológica do ser humano.

   Desde Aristóteles, vários pensadores ressaltaram o caráter de passividade e submissão da pessoa às suas paixões e inclinações, quase sempre tidas por nocivas ou perigosas à razão, e contra as quais pouco se podia apelar através do autodomínio individual. Em oposição a isso, Santo Tomás encarecia a necessidade e possibilidade do ser humano derivar suas paixões para objetos bons e dignos. 


Não obstante a opinião de Santo Tomás, Spinoza, Rousseau, Montaigne também viam nas paixões, apetites cegos e indomáveis, que entravam e perturbavam o entendimento, a reflexão, o raciocínio e o julgamento, arrastando o homem à violência, aos desregramentos, fanatismos, sectarismos e despotismos, com todas as suas conseqüências.


   Depois das considerações mais variadas sobre esse tema, provenientes de filósofos, pensadores e romancistas, a psicologia contemporânea consignou alguns avanços importantes, no que se refere à sistemática das inclinações e paixões. Sabemos hoje, com efeito, que as inclinações e paixões não são previamente boas ou más em si mesmas, mas sim, em função das deformações e desequilíbrios que possam produzir em nossa mente. Evidentemente que, tanto as inclinações quanto as paixões corrompem a REPRESENTAÇÃO da realidade. São maneiras totalmente deformadas de considerar o real.


Representação da Realidade

Empatia e Ressonância Afetiva


   As Ressonâncias Afetivas, segundo Nobre de Melo, compreendem as várias modalidades de empatia, termo e conceito introduzidos em Psicologia por Theodor Lipps, de excepcional relevância por constituir valiosa fonte de conhecimento intuitivo e REPRESENTAÇÃO da realidade.

   Em seu mais amplo sentido, a empatia é um processo que se manifesta como uma intencionalidade objetiva do eu no não-eu, ou do sujeito sobre o objeto sob a forma de identificação emocional, fusão afetiva, interação anímica e espiritual. Este processo, tanto se refere a coisas, objetos, experiência sensível no mundo, na natureza e na Arte, assim como às atividades, emoções e sentimentos do eu alheio.

   Goethe, em suas Afinidades Eletivas, enaltece a ação benéfica que a esmeralda exerce sobre nós, cuja cor maravilhosa tanto agrada à vista, e exalta o poder curativo da beleza humana, cuja contemplação nos torna isentos de todo mal, caracteriza com isso, nada mais que uma forma de objetivação empática de seus próprios sentimentos no mundo exterior. Assim sendo, então, a empatia também pode influenciar na e REPRESENTAÇÃO da realidade. A empatia é como uma projeção dos sentimentos e estados de ânimo nas coisas em torno, tal como faziam os povos primitivos animando a natureza com deuses e duendes, ou os artistas e poetas com a linguagem literária adornada de imagens e expressões simbólicas.

   A empatia é também reflexo de uma riqueza de nossa vida interior, objetivada intencionalmente na natureza que nos envolve, tal como quando falamos, simbolicamente, do "ar altaneiro e desdenhoso de uma palmeira que se ergue, esguia e solitária, no topo da montanha", ou quando falamos dos "açoites do vendaval, impetuoso e iracundo"; ou dos "arremessos do oceano, selvagem e apaixonado"; ou ainda de "vales tranqüilos e amenos", de "árvores amigas", "regatos sussurrantes”. . . e tantas outras expressões com as quais projetamos, enfim, na natureza circundante, os sentimentos que povoam o nosso mundo interior.

   Uma forma de objetivação empática é aquela caracterizada por participação ou fusão afetiva. Trata-se aqui de uma variedade passível de observação até mesmo entre os animais de vida gregária. Na espécie humana, citam-se como exemplos da fusão afetiva, a identificação empática dos membros de um clã, uma tribo, uma família, entidade de classe, etc. Trata-se, por exemplo, da fusão da mãe com o filho ou da criança com os personagens fictícios e objetos inanimados do mundo infantil, do adolescente com os heróis do romance. Obviamente que, com a empatia, há interferência sobre a REPRESENTAÇÃO da realidade.

   Algo parecido é a chamada empatia estética. Por empatia estética entendemos tudo o que concerne à indecifrável relação afetiva que a obra de arte estabelece entre o criador e o contemplador. Como qualquer outra modalidade de empatia, esta pode ser positiva ou negativa e só no primeiro caso podemos falar em coafinação empática. No segundo caso haverá discordância entre o emitido e o recebido. É o tipo ou modo de empatia que decide, em última instância, se o dito objeto artístico é esteticamente valioso ou não.


A REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE

ESTADOS AFETIVOS COMPLEXOS


Verificaremos aqui os estados afetivos complexos capazes de influenciar na REPRESENTAÇÃO da realidade. Pode-se entender como estados afetivos complexos, certos fenômenos tímicos que ora se dão como puros estados de consciência sem conteúdos intelectuais, como é o caso dos sentimentos do eu, de Karl Jaspers, ora se apresentam aderidos a realidade externa. Atrelados à realidade externa, porém imaginária, esses estados afetivos seriam os sentimentos fantásticos de Jaspers e, referentes à realidade externa verdadeira, seriam os sentimentos de representação e de juízo a que correspondem, respectivamente, os sentimentos estéticos e os de valor.

   Alguns desses estados afetivos complexos podem ser aqui referidos. É o caso, por exemplo, do pesar. Um desprazer intenso, de motivação moral ou psíquica, com acentuada e clara agudização da consciência do eu. É também o caso do sentimento de tristeza simples, ao qual pode se somar a perda da impulsividade reacional, uma atitude de desalento, uma entrega passiva e resignada ao sofrimento. Temos também o desgosto, que é uma variedade de pesar onde se vislumbra algo de revolta contra alguma sensação de injustiça. O desgosto trará mais sofrimento quando à ele se alia a perda total de qualquer esperança de reparação. Nesses casos teremos o sentimento de desespero.

   Outro estado afetivo complexo é a repugnância, um estado onde o sentimento de repulsa e aversão se objetiva sob a forma de nojo ou asco, podendo exteriorizar-se com ou sem reação nauseosa concomitante. O mesmo se pode dizer dos conteúdos vivenciais da alegria, sempre ruidosa e comunicativa, como que a reclamar a compartilhação alheia com seu transbordamento. Ainda temos o sentimento de júbilo, o qual pressupõe um acontecimento motivador, e onde se entrevê certa ponta de orgulho, com secreto desejo ser distinguido e festejado. Há também o otimismo, uma atitude intelectual de bom humor e a satisfação, sempre discreta e silenciosa, por mais intensa e duradoura. Há também o estado afetivo do ressentimento, um sentimento que pode brotar do flagrante desacordo entre o que poderia ter sido e que não foi. Aqui, a nota dominante é dada pela tendência à ruminação masoquista do que tenha sido vivenciado como injusto, deprimente e humilhante.

   Finalmente, como estado afetivo complexo capaz de interferir na REPRESENTAÇÃO da realidade, temos a angústia, apanágio do homem como espírito. Esta decorre da consciência que o homem adquire de sua liberdade, ao passar da inocência à culpa, segundo o existencialismo. A liberdade e a possibilidade geram a angústia existencial, pelo que não é mas poderia ser, colocando-se o futuro como realidade ameaçadora.

   Embora não seja de todo necessário aqui distinguir, fenomenologicamente, a angústia, o medo e a ansiedade, podemos refletir brevemente sobre isso. Diferenciar o medo da angústia é tarefa relativamente fácil. O medo normal tem sempre um motivo conhecido e um objeto consciente, reais e plausíveis, o que não sucede na angústia, que surge sem motivo justificável e sem conteúdo objetivo. Na ansiedade há mais um sentimento de previsão ou antecipação de um perigo imaginário e desconhecido. Entretanto, as manifestações somáticas do medo, da ansiedade e da angústia são, na verdade, aparentemente semelhantes.

   Recorrendo à estratificação das categorias de avaliar-se a realidade vistas no início desse capítulo, podemos deduzir que o medo é um estado afetivo que se origina nas camadas dos chamados sentimentos sensoriais e dos sentimentos anímicos, é uma emoção primária (ver acima) e além disso, é suscitado pela presença de uma situação ameaçadora real, que ponha em risco imediato ou mediato a integridade física ou moral do indivíduo, como dissemos. 

O medo é um fenômeno psíquico, diretamente vinculado ao instinto de conservação individual e, portanto, pertencente tanto ao homem como aos animais. A ansiedade patológica é sempre um medo mórbido e que se origina, sem motivação conhecida, na esfera dos sentimentos vitais.

   A angústia existencial, propriamente dita, emana da esfera dos sentimentos espirituais (ver categorias de avaliar-se a realidade) e é, por isso, específica e exclusiva do ser humano. Os animais são suscetíveis de medo e de ansiedade, mas não de angústia existencial, a qual pressupõe a consciência de estar-no-mundo, de existir no tempo, de ser-para-a-morte.