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Itacaré , Bahia, Brazil
Nesse blog, vou apresentar uma serie de estudos, textos, pesquisas e vivências que fazem parte do meu transito molecular, comumente chamado de vida. Iniciado no Budismo Vajrayana (Tibetano) aos 20 anos. Praticante de Iai do (4º Dan) .Graduado em Psicologia (UFMG - 11980) com formação em Psicologia Analítica. Socorrista (SAR) com especialização em resgate com helicóptero, em caverna e altura. Negociador junto a organizações militares em MG de suicídio com e sem armas letais, sequestro e cárcere privado. Clínica psicológica ininterrupta desde graduação. Amante da vida natural, moro em meio à Mata Atlântica na Bahia.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021





Sob os domínios de Pã


O Medo, este nosso ancestral.


Uma contribuição ao estudo dos medos. 


Pã é o deus agreste, o deus dos cultos pastorais, de aparência meio humana, meio animal, barbudo, chifrudo, peludo, vivaz, ágil, rápido e dissimulado, ele exprime a astúcia bestial, básica. Eternamente à procura da satisfação sensual e sexual e, nunca a realizando, continua incessantemente a cata daquela que será capaz de satisfazê-lo.

Pã é filho de Hermes e Driope que, horrorizada com a monstruosidade, com a feiúra de Pã, o rejeitou, mas Hermes o acolheu e o envolvendo numa pele de cabra, levou-o para o Olimpo, colocando-o junto a Zeus. Os outros deuses ao verem a criança, se alegraram muito, sobretudo Dionísio, que mais tarde o engajaria em seu cortejo.

Os imortais deram-lhe o nome de Pã pelo júbilo que provocou em todos, daí a etimologia popular que confundiu Pan-jubilo (Παν) com Pan-Tudo (Παν).

Semelhante etimologia será retomada posteriormente pelos mitógrafos e filósofos que verão nesse deus menor a encarnação do Universo, do Todo.

A Pã não é atribuído exatamente um mito. Sua função era ser um deus dos pastores e dos rebanhos.

Turbulento e jovial era em parte zoomórfico e em parte humano. 

Dotado de agilidade prodigiosa, percorria grutas, vales, bosques, em perseguição incansável às ninfas. Quando não as encontrava, satisfazia seu imenso apetite sexual com jovens ou se masturbava.

Seus principais atributos eram a flauta (que o aproxima da ninfa Sirinx), o cajado (que o aproxima de um mentor, aquele que conduz) e uma coroa trançada de folhas de pinheiro (que o aproxima da ninfa Pítis).

Os deuses deram-lhe o nome Pã não apenas por se identificarem com ele sob múltiplos aspectos, mas também porque o novo deus encarnava uma tendência inerente ao Universo como um todo. "Deus do Todo" traduz a energia genésica deste Todo ou Todo da Vida.

Seus aparecimentos súbitos, seus gritos (Iinx) provocam o Pânico, o terror que se derrama sobre a natureza e impregna todos os seres, ao se sentir a presença de uma divindade que perturba o espírito e enlouquece os sentidos. Despido desta sensualidade primária irrefreável, o deus personificará mais tarde o Grande Todo, O Todo de cada Ser.

Aqui surge o principal e primordial interesse psicológico nos relatos sobre o deus Pã.

No estudo aprofundado da "psiqué" humana, lançando mão dos relatos e mitos do deus Pã, vislumbramos ali as sementes da cura.

Existe um objeto que está fortemente associado ao deus Pã: a flauta. 

Pã se encontrava (mais uma vez) perdidamente apaixonado por uma ninfa (Sirinx) e a perseguia incansavelmente. Sirinx, para se ver livre de tal desmesurado assédio, pede refúgio e acolhida a seu pai, o rio Ládon, que a acolhe em suas margens e a transforma em caniços, que ao sopro do vento emitia sons lúgubres. Pã, reconhecendo ali a voz de sua amada, corta alguns caniços em tamanhos diferentes, une-os com cera e confecciona assim uma flauta que recebeu o nome de Sirinx, em homenagem à ninfa.

Curioso é que, o sufixo "iinx" é o nome de uma ave mítica filha do próprio Pã com outra ninfa, Eco. O vocábulo grego "iinx" significa gritar e, de fato, existia uma ave que era chamada "iinx" por causa de seu grito estridente. Popularmente dita ave era chamada, ora de "alvéola" ora de "torcicolo" pois, ao emitir seu pio torcia o pescoço daquela forma que torce quem está acometido do mal, movimentos repetitivos de um lado para outro com o fito de aliviar o incômodo.

Esta ave era usada para sortilégios e filtros amorosos. Os seus gritos impregnavam os ouvidos e a alma da pessoa que se queria atingir, impedindo que ela se afastasse, presa que estava pelo encantamento.

Pois bem, quando Pã queria provocar paralisia pelo medo ele gritava a plenos pulmões e, quando o seu desejo era tão somente de "encantar", "envolver", ele tocava a Sirinx e assim ele igualmente "aprisionava", "paralisava".

O sujeito tomado de pânico está como que encantado preso por algum sortilégio ou feitiço, isso tanto nos tempos passados como no presente.

Ora, Pã é um deus vivaz, primordialmente relacionado com as energias genésicas básicas, energias de criação, de procriação, de satisfação básica dos sentidos carnais e inerentes a todo ser humano.

Ao observarmos os sintomas que qualificam o paciente de Transtorno do Pânico, encontramos o seguinte: o indivíduo tem sudorese, taquicardia e palpitações, tremores ou abalos, sensação de falta de ar ou de sufocamento, sensação de asfixia, náuseas ou desconforto abdominal, sensação de instabilidade, vertigem, tontura ou desmaio, sensação de irrealidade ou despersonalização, medo de perder o controle da situação, medo de enlouquecer, calafrios ou ondas de calor, parestesias (sensação de anestesia), formigamento das extremidades, medo de morrer.

Pois bem, sempre que estamos diante de situações que exigem um envolvimento total do corpo e/ou da alma, irrompem um ou mais de um dos sintomas acima descritos, em maior ou menor intensidade, variando com as características individuais.

Basicamente são respostas do Sistema Nervoso Simpático que, efetuando uma descarga em massa de hormônios, na qual a medula supra renal também é ativada, lança no sangue a adrenalina e assim surge uma reação de alarme. Situações emocionais sempre lançam na circulação certas quantidades de hormônios que têm a função de "acordar" o organismo para o evento em questão. Em situações corriqueiras estes níveis hormonais atuam somente em uma víscera ou poucas vísceras, raramente se expandindo por todo o organismo. Entretanto, nas situações sentidas pelo corpo/alma como limítrofes descargas massivas de adrenalina caem na circulação produzindo sintomas bastante conhecidos como Síndrome de Emergência de Cannon (“to fight or to flight").

Assim é que numa situação real de emergência, numa situação paranóica ou numa situação fóbica, há uma maior transformação de glicogênio em glicose que, uma vez lançado no sangue, aumenta as possibilidades do consumo de energia pelo organismo. Há um aumento das condições hemodinâmicas nos músculos que se faz por vasoconstrição nos vasos cutâneos e mesentéricos (provocando palidez), aumento da freqüência cardíaca acompanhado de um aumento na circulação coronariana. Ocorre ainda um aumento da pressão arterial, o que pode causar a morte p. ex., por ruptura de vasos cerebrais. Nos olhos ocorre a dilatação das pupilas, nos intestinos diminui o peristaltismo e o "trancamento" dos esfíncteres. Na pele ocorre a ereção dos pelos e o aumento considerável da sudorese.

Essa é uma descrição clássica da reação de emergência do organismo diante de um ataque real, podendo surgir também pela evocação de um ataque imaginário. O surgimento destes ou de alguns destes sintomas sem o devido disparo físico, nos sugere a ocorrência de uma situação que classificamos como de medo irreal, pânico ou reação fóbica. Ora, se não está havendo um estímulo físico, observável, temos que supor que este estímulo está presente em outro nível, e só nos resta o nível da alma.

A abordagem puramente orgânica desta sintomatologia nos leva a um caminho perigoso e na maioria das vezes, sem volta. Os psiquiatras menos sensíveis reduzem este fenômeno a descargas puramente hormonais, químicas e isso é uma banalização extremamente perigosa. Neste momento está sendo desconsiderada uma parcela imensa da economia orgânica do indivíduo qual seja, a parcela que pertence à alma, ao inconsciente.

É interessante notar que uma grande parte de drogas utilizadas no tratamento do Transtorno do Pânico (posto que não existem drogas antipânico), são: anticonvulsivantes (clonazepan= Rivotril, Klonopin); antidepressivos tricíclicos (ADT)=imipramine, clorpramine (Anafranil); benzodiazepínicos e inibidores seletivos da reabsorção (reuptake) de noradrenalina e serotonina.

Estas drogas, em sua atividade química, inibem a transmissão da informação nervosa, que com o bloqueio pré ou pós sináptico, impede que o trânsito da informação chegue ao córtex, impossibilitando assim a totalidade da experiência, seja ela qual for. De fato, estas drogas burlam, negam ao consciente a totalidade da experiência do organismo, da alma. E mais, certamente a consciência do médico deveria estar desperta para o fato inquestionável de que, a maioria destas drogas, pode fazer surgir ao longo do tratamento o quadro tão bem conhecido pelos profissionais de saúde mental: a esquizofrenia oculta. Deveria ser levado em conta a troca de um sintoma por outro!!!

A administração cautelosa de psicofármacos se faz necessária com o fito específico de suprimir o surto, o eclodir do pânico que é terrível...e a administração da droga deveria se resumir a isso, o abaixamento dos horríveis níveis do pânico... um bálsamo. Nesta condição de sedação, o sujeito deveria ser conduzido pela mão experiente do sábio, à presença do deus Pã, o doador do pânico, pois só ele pode reverter o processo.

O sujeito tomado de pânico tem que se curvar ao grande deus e escutar o que ele tem a dizer ou o que tem a mostrar (ab-reação) e é tão somente nesta perspectiva que a cura se efetuará.

Em nossa ânsia de salvarmos o indivíduo não podemos, apenas, darmos uma droga por outra. Eu digo que as doenças sejam do corpo ou da alma não deveriam ser "tratadas" mas, antes, acudidas e pensadas (literalmente: pesadas do latim "pesare” = pensar por comparação).

Fica claro que o sujeito precisa ser acudido prontamente, com pena de acontecer algo mais grave. A aplicação de drogas psicofarmacológicas deveria ser empregada como bálsamo, não como tratamento. A validade destas drogas como tratamento fica discutível quando não vemos resultados efetivos e duradouros para o caso em questão. A própria inexistência de drogas antipânico por si só, já nos dá o que pensar.

A epidemiologia nos mostra uma recidiva em tratamentos ditos bem sucedidos, em até dois anos depois de findo o tratamento, o que nos sugere que o núcleo real do problema não foi alcançado.

Por outro lado, o tratamento psicoterapêutico também não surte efeito inicialmente posto que, naquele momento, o indivíduo está sucumbindo sob o peso da síndrome e é aqui que a droga precisa ser usada como um bálsamo. Superada esta fase inicial, onde se estimam terem sido bloqueados os sintomas mais emergentes, deve-se iniciar um trabalho de psicoterapia profunda onde os aspectos mais ocultos, mais sombrios da alma, deverão ser muito bem explorados e aqueles conteúdos constelados de uma forma patológica deverão ser compreendidos, interpretados e trazidos à luz, onde se dissolverão e, com isso, também os sintomas e a doença que eles provocavam.

É somente no estudo cauteloso e sistemático das profundezas da alma, que encontraremos os elementos capazes de elucidarem o "porquê" do desenvolvimento patológico daquele indivíduo.

O afloramento dos sintomas do TP no início da idade madura (mais ou menos dos 23 aos 32 anos) sugere que tem algo a ver com o enfrentamento da vida adulta e a sua incapacidade de fazê-lo. De fato, temos encontrado na anamnese do paciente, história de desvalorização, de desqualificação e de amor e afeto condicionais; algo próximo do "Puer Aeternus". O que vem a ser isso? Na infância do sujeito podemos encontrar situações domésticas onde os seus valores pessoais são suprimidos na forma de um extensivo e continuado processo de desvalorização, de negação dos desejos e sentimentos mais pessoais. Estes sujeitos têm uma forte atração pela figura materna, que é poderosa, totalitária e, some-se a isso, na maioria das vezes coincide que a figura do pai é frágil, senão totalmente ausente. Denota-se daqui que, o sujeito assim criado, não desenvolve a energia necessária para, mais tarde, penetrar na esfera do tempo e do espaço do adulto. Fica incapacitado pela inflação do feminino e pela aniquilação do masculino, de organizar adequadamente as forças genésicas básicas que dão sustento e suporte ao indivíduo maduro, pronto, capaz de suportar o peso natural da vida. Encontramos no paciente um quadro denominado "puer aeternus", onde a característica central é a inadequação para o cotejo com a vida adulta, uma incapacidade de se afastar da infância, da juventude.

O sujeito "Puer" tem uma forte e indissolúvel ligação com a mãe. Ele a cultua de uma forma intensa. Não consegue se desligar de sua imagem de protetora e provedora de todos os bens e prazeres mundanos. Tal atitude se reforça continuadamente se existe a ausência do pai, que deveria interditar tal tipo de relação, resgatando para si a mulher e fazendo com que a criança passe pela "teleté" (cerimônia de iniciação) sempre sofrida de, morrer de uma vida infantil, indiferenciada, para renascer para uma vida diferenciada, onde a mãe agora, começa a existir de uma maneira mais distanciada...adequadamente distanciada. Existe uma incapacidade em se deixar para trás a juventude e uma consequente impossibilidade em se penetrar no mundo dos adultos. A própria figura de Pã nos sugere isso em alguma medida. Vivaz, mordaz, buliçoso, dissimulado, satírico, eternamente à cata de prazeres sexuais, incapaz de se relacionar adequadamente com as mulheres, diria mesmo que seria o precursor do Donjuanismo que vem a ser uma das características marcantes do indivíduo "puer”..

As formas marcantes do indivíduo "Puer Aeternus" são dados pelos dois distúrbios típicos desta personalidade: o homossexual e o Dom Juan. No último caso a imagem de mulher que tudo dá e a tudo atende no homem e que, principalmente, é perfeita, sem nenhum defeito, é procurada em todas as mulheres. Este homem procura uma mãe-deusa e, a cada vez que se apaixona, logo descobre que ela é um ser humano comum e aqui ele parte para uma nova conquista, deixando aquela para trás porque inútil aos seus propósitos idealizados, inatingíveis, posto que os deuses não estão na esfera do humano.

O homossexual, reduzidamente e resumidamente, é aquele que, tendo tão forte a imagem de mãe-deusa, não ousa, mesmo porque não está presente a força masculina necessária para desvelar o mistério de nenhuma mulher, preferindo se encontrar prazerosamente com iguais. Um distúrbio, inequivocamente, da incapacidade de se diferenciar. Fica constelado eternamente dentro do bojo materno e daí não querendo sair. É capaz de penetrar na vida adulta, mas de uma forma torta, de viés, posto que os atributos de masculinidade e feminilidade estão indiferenciados. Há uma inflação, na maioria das vezes da afetividade (que é um atributo feminino), tudo tende ao exagero, as coisas ficam distorcidas e raramente o prazer sensual, sexual e afetivo se dá de maneira adequada, pelo simples fato de não haver o núcleo "opositorum" que determina uma relação propriamente dita. Uma relação homo, não é uma relação, é uma visão especular de si mesmo.

No caso do paciente de pânico existe um híbrido no tocante aos atributos de personalidade (Donjuanismo e homossexualismo). Não encontramos neste sujeito de pânico, necessariamente, nem um nem outro atributo acima descrito, mas uma fusão dos dois. A inadequação de comportamento descrita como Síndrome de pânico, sugere uma dissolução mais ou menos acentuada do quem-sou-eu e, também está presente, como dito anteriormente, uma forte energia sexual, dirigida não especificamente para um ou outro sexo, mas dirigida tão somente para sua descarga, para a sua resolução. Ora, é de se esperar encontrar num sujeito fortemente ligado à mãe, uma ausência de personalidade bem individualizada e bem estruturada. Ainda existe aqui uma ambigüidade, uma indefinição de personalidade que incapacita o sujeito de tomar decisões, no mínimo de enfrentar e resolver adequadamente o dia-a-dia.

"Puer aeternus" vem a ser o atributo principal de um deus da antiguidade de nome Iaco (Iakhos). Na realidade Iaco é o nome místico de Baco nos Mistérios de Elêusis. Ora, Iaco provém de iakhe (grande grito, particularmente, grito de combate ou de alegria). De novo nos encontramos aqui com o "grito". O gritar é uma característica da infância, da adolescência...é o se fazer ouvir de qualquer jeito, é a substituição da palavra pela imposição do sentimento que ela traduz.

Entretanto, o grito aqui está relacionado com uma situação de iniciação. De fato, nos Mistérios de Elêusis, os neófitos gritavam ao adentrar, ao ultrapassarem o umbral do Templo de Demeter: "Iaco!, Oh! Iaco!", e este grito sagrado acabou por transformar-se no próprio deus. É através das mãos da inocência, da criança, de Iaco, que somos levados a conhecer os grande Mistérios, mas não podemos nos confundir e fundir com a criança mesmo. Existe um dito tibetano que fala: “Aponte a lua com o dedo, mas não confunda a lua com o dedo".

Os atributos da criança, a inocência, o estar desarmado, devem nos conduzir na direção do conhecimento, mas, uma vez adquirido o conhecimento, há que ser abandonada a postura infantil, indiferenciada diante do mundo. Aqui surge a cisão, a separação, e toda separação traz dor, desconforto, inquietação e desorientação. Referenciais antigos são abandonados, e referenciais novos se impõem. Tudo é novo. A velha criança precisa ser abandonada. O nome de criança precisa ser trocado por um novo nome. O paraíso adâmico precisa ser deixado para trás e uma nova constelação de eventos surge à nossa frente, desconhecida, inédita.

Ora, um distúrbio típico dos transtornos de Pânico é a "agorafobia". O que vem a ser isso? "Ágora" é o grande paço, a praça grega onde os encontros se davam, onde os encontros se tornavam possíveis. A agorafobia se traduz pelo medo do encontro, pelo medo do novo, do desconhecido...e o outro é sempre desconhecido. Daí, a inadequação destes tipos patológicos de não enfrentarem a vida e o outro, pois estes, são a exata tradução do desconhecido, e somente a pessoa madura, acabada, iniciada nos Mistérios, é que é capaz de caminhar na direção do desconhecido absoluto que é o porvir.

Estamos arranhando a forma, mas não estamos enxergando o modelo que deu origem à forma. Por que o medo, por que a angústia, por que todos os sintomas de infantilização, por que não soltar a mão da mãe, por que não se separar de seu útero protetor?

Por trás de tudo isso está a morte.

A morte nos espreita à porta do útero.

Somente dentro do útero é que o homem está a salvo do morrer, porque ainda é vida-dependente. Não tem vida própria, seu existir está suspenso pelo cordão que o prende à matriz. No momento mesmo da ruptura deste cordão o ser é imediatamente acolhido pela morte, pela sua própria morte....e aqui está o terrível destino do ser: morrer inexoravelmente a cada dia. Experimentar o morrer, consciente ou inconscientemente, em todos os gestos, ações, coisas, realizações, objetos, pessoas...este é o morrer pleno, digno, maduro.

Não existe "vida" fora do útero, existe apenas um imenso fluxo de morte. A vida é intangível, apenas a morte é tangível.

Toda a história do homem é pautada na percepção inconsciente deste fato e, todas as criações filosóficas e religiosas vieram a existir para tentar facilitar a convivência com tal fato grandioso.

Na dimensão patológica do "puer aeternus" fica a tentativa de, não se afastando da infância, da juventude, não se aproximar da velhice e da morte...como se a morte fosse um privilégio da velhice.

Desta forma, gostaria de trazer a questão do pânico para o âmbito da personalidade infantil, inadequada, do sujeito que é acometido de tal nosologia.

Talvez aqui resida o núcleo de todo o processo do transtorno.

Uma verdadeira e empática compreensão da história de vida do paciente se faz necessária.

O conhecimento da complexidade psicológica e não somente psicopatológica se faz mister.

O atendimento primário do paciente deveria ser feito, ou por um psiquiatra com sólidos conhecimentos de psicologia profunda, da alma humana ou por um psicólogo com sólidos conhecimentos de psicopatologia.

A fogueira de vaidades alimentada por médicos e psicólogos radicais só faz ruir a construção de apoio e atendimento ao paciente portador do Transtorno do Pânico ou de qualquer outra situação patológica.

Existe a necessidade do apoio medicamentoso ao paciente, mas este deve ser apenas o início de uma jornada que, raramente é curta. O cerne da caminhada deve passar pelas profundezas da alma, caminhada esta que levará o sujeito à presença temível, mas necessária do grande deus dos gritos e, uma vez tendo se curvado à presença do grande deus do todo e conhecido os mistérios que envolvem suas mensagens, descobrir-se-á que os sortilégios, o grito paralizante que ele deu, não tiveram outra função senão a de matar ou paralisar o que precisava morrer ou ser paralisado, para que   possa nascer para uma morte mais digna, aquele ser que estava atrofiado, amedrontado, irrealizado.

É esta a morte simbólica que todos temem e, por não compreendê-la, a confundem com a morte verdadeira.

A única forma de banir para sempre o pânico é você assumindo a sua própria mortalidade, abraçando a morte com prazer e não com desdém. Fazendo a sua própria morte ser cotidiana e não mais postergá-la para a velhice. Fazer dela a sua companheira cotidiana, e mais, dar a ela o poder de te matar suave e longamente. Se este pacto for bem feito, a sua morte passará a ser a guardiã do seu morrer, não permitindo que nada nem ninguém o mate e, desta forma, estaremos resolvendo de imediato um dos problemas centrais do pânico qual seja, a "agorafobia". Na comunhão com a própria morte, estará o indivíduo protegido das dores do existir, pois, a partir daí, a compreensão de que tudo é impermanente se torna o fulcro central da existência. Com a compreensão da impermanência, surge a clareza da mortalidade, da finitude e, como conseqüência fica mais fácil transitarmos neste mundo de apego que, em última instância é o verdadeiro provocador do pânico.

Apego, esta é a grande rocha sobre a qual Pã está assentado, onde ele tem os pés (seus cascos fendidos) bem plantados,  onde ele encontra firmeza para fazer tremer o próprio Olimpo.


Marcus Vinicius Moreira de Assumpção

Psicólogo clínico

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021


O Suicídio ou a Entrada na Morte



De modo geral estamos habituados a pensar no suicídio como uma saída covarde da vida. As formas pela qual isto se dá são as mais variadas. São fartamente documentadas pela estatística criminal na forma de bilhetes, cartas, comentários, constatações, etc.

O suicídio é, ao mesmo tempo que uma saída da vida, uma entrada de alguma forma consciente para a morte.

Quero tratar aqui da morte que escolhemos, diferenciando-a da morte que vem ao nosso encontro (a morte natural, cotidiana).

Como analista, trabalhando dentro de um recinto hermeticamente fechado para o coletivo, que é o consultório, vejo desfilar à minha frente, situações e vivências, mais do que qualquer outro profissional de saúde veria. Por exemplo, um médico tem a sua frente um paciente que traz em seu corpo uma marca, um sinal, um sintoma que pode, em alguma medida ser sanado (ou não). Nesta medida, ele trata de uma manifestação exterior e, também pôr esta razão, não toma a doença do paciente como a sua doença; este é o seu “modus operandi”... O analista o faz, na medida que o processo transferência\contra-transferência é o cerne da análise.

Na análise profunda da alma, que é o que ocorre em nossa prática, esbarramos, necessariamente, com a morte e com a sua possibilidade auto-engendrada que é o suicídio. Albert Camus in The Myth of Sisyphus diz: “Não há senão um único problema filosófico sério: é a questão do suicídio. Julgar se a vida vale ou não a pena de ser vivída equivale a responder a questão fundamental da filosofia. Todo o resto... daí decorre. Esses são jogos: deve-se primeiro dar uma resposta”.

Assim é que, se desejamos aprofundar de fato a reflexão sobre o viver e defrontarmo-nos seriamente com a realidade, nos chocaremos frontalmente com a mortalidade. É somente da vida que podemos observar a morte, um morto não pode absolutamente fazê-lo. Somente quem está vivo é que pode morrer, assim sendo, consciente ou inconscientemente estamos nos debatendo com a questão última.

Nós, mortais, temos uma atitude, no mínimo insensata de encararmos a morte: nós a percebemos como alguma coisa que acontecerá na velhice, alguma coisa que pertence a um tempo distante (que exorcizamos continuadamente), alguma coisa que poderá acontecer na continuidade de uma doença. Nós a percebemos como a entrada para uma outra vida, nós não a colocamos nesta existência senão no último segundo deste existir aqui. Perdemos de vista que, na realidade, nós entramos na morte quando nascemos; a morte interessa à vida. Quando nascemos já temos idade suficiente para morrermos.

Qualquer pessoa que ultrapasse o umbral de um consultório está mobilizado pela morte em qualquer um dos seus aspectos: doença física, depressão, perda (morte) de um ente querido, uma separação, a perda de um negocio, a instalação em si mesmo de uma doença degenerativa, um acidente, e quanto ao suicídio, devemos atentar para o fato de que não existe apenas uma forma de suicídio, ou colocado de outra forma, muitos são os substitutos para o suicídio e ainda assim guardam em grande forma o seu “status”. O que seriam estes substitutos?, os acidentes, as doenças auto-imunes, as drogas, o alcoolismo, o trabalhar compulsivo. O suicídio coroa a questão se impondo diante de nós de forma definitiva e implacável. Não há o que ser dito ou interpretado no suicídio enquanto ato acabado. Ali à nossa frente não está apenas um morto, está alguém que conjurou a própria morte (cunjurare: jurar junto), está ali alguém que determinou como seria o restante de sua existência; está ali alguém que resolveu sair da vida ou resolveu entrar na morte? Não quero que sejam estas palavras tomadas como um jogo, mas que sejam vistas como a perspectiva que descortina alguém que se colocou no umbral de dois mundos, levado até ali seja pela razão que for.

A nossa tentativa de encarar o suicídio de uma maneira diferente daquela que na maioria das vezes é encarado, decorre desta participação sinistra que se dá no “temenós” formado no consultório. “Temenós” é o espaço sacralizado por um rito e que determina o ambiente onde fatos extraordinários, supranormais acontecerão. Que fatos supranormais seriam esses? São revelações, são descrições, são relatos de uma região tão próxima e tão distante qual seja a alma. O que nos vemos aqui é o desnudamento da alma do sujeito no encontro analítico. Desnudamento por um lado e contemplação pelo outro; diferente do encontro médico e/ou psiquiátrico (que é o médico que prescreve drogas para os sofrimentos da alma, ele só vê os sintomas, mas desconhece o funcionamento dos meandros da alma), que é um encontro onde se estabelece um laço de confiança e transferência apenas como acessório daquele momento em particular. Na análise profunda, entretanto, a transferência é mais que um acessório é a base do encontro, e aqui o encontro é aberto, é incondicional, sob pena de não haver a menor possibilidade da continuação da análise. Aqui ocorre o surgimento do laboratório alquímico onde analista e analisando se fundem num processo de descobertas de ambos os lados. O foco é que fica dirigido de forma natural e serena sobre a figura do analisando, mas as transformações ocorrem nos dois sujeitos de forma profunda e gradual.

Esta aliança singular a qual chamo de pacto sinistro (sinistro porque é um pacto feito às cegas, incondicional, sem nenhuma forma de restrição, sem qualquer crítica, sem qualquer julgamento de valor ou ético), e que é a base de trabalho necessária para que a vida/morte surja em todo seu esplendor. Enquanto nos encaminhamos para as profundezas da alma daquele ser que está a nossa frente, vamos nos encaminhando de forma inexorável de encontro à morte dele mesmo (e também da nossa) enquanto única certeza. Aqui, talvez, a expressão sinistro possa ser mais bem entendida, pois, no nível superficial podemos ver a morte manifesta, mas a nível profundo podemos ver a morte se insinuando, se instalando, se organizando...se cumprindo. De fato, a vida é apenas aquilo que vemos de fora, de dentro só encontramos morte acontecendo, e coisa curiosa, quando vemos a morte aqui de dentro de maneira clara, inequívoca, ela não se nos mostra mais de forma tão aterradora, passa ser apenas a vida se consumindo a si mesma, mais ou menos rapidamente, de conformidade com as deliberações tomadas por, e às vezes impostas àquele ser.

Pronto. Esbarramos finalmente na alma, que é este lugar de Luz e de Sombra. Aqui está o fundo do labirinto. Aqui reside o monstro que foi criado e  aprisionado pelas paixões, pelo orgulho, pelo amor, pelo ódio, pelos afetos, pela educação daqueles que temem a morte e que, ainda mais dramático, tem contato com a imensidão do inconsciente coletivo, lugar depositório de toda a história da humanidade desde seus primórdios. Não há como ignorarmos a presença deste inconsciente. Ele se faz presente pelos ruídos interiores, se insinua nos sonhos, aparece projetado na pessoa à nossa frente, parece estar escondido naquele canto escuro da noite. Esta é a Sombra. Esta é a dimensão mais temida e apaixonante de todo o ser. É a parte de nós mesmos que amamos e tememos com tanta ferocidade. O medo, o pânico, os receios, o pavor da morte, até mesmo o tão decantado amor tem uma predileção toda especial pôr esta região.

O suicídio é a possibilidade que está instalada na alma desde o nascimento. É a certeza que todos os seres têm, não importando etnia, crença ou religião, de poderem dispor da própria existência. No entanto não sabemos como administrar esta certeza posto que a elucidação da morte passa a pertencer à teologia e à sociedade que, aquela, baseada no exercício da fé, estabelece dogmaticamente os rituais de morte como: os últimos sacramentos, os ritos funerários e elucubrações escatológicas sobre o Céu e o Inferno, e a cultura, controlando e criminalizando tal ato por significar, em alguma medida, a falência, a morte de uma parcela de si mesma.

É necessário este nível de reflexão, ainda que confronte, num primeiro momento, com as dinâmicas sociais, religiosas, médicas e morais.  

Citando  James Hillman:  “A Teologia sempre soube que a morte é a primeira preocupação da alma. Num certo sentido, dedica-se a morte [......] A morte, entretanto, dificilmente se abre à investigação teológica. Os cânones foram estabelecidos por artigos de fé. A autoridade do sacerdócio deriva seu poder das leis que representam uma posição elaborada em relação à morte. A posição pode variar de religião para religião, mas está sempre presente. O teólogo sabe em que terreno está pisando a respeito da morte. As escrituras, a tradição e o ministério dizem-lhe porque existe a morte e o que se espera dele em relação a ela. O esteio da psicologia do teólogo, bem como sua autoridade, é sua doutrina sobre a vida-após-a-morte. As provas teológicas para a existência da alma estão de tal maneira ligadas aos cânones da morte - cânones sobre a imortalidade, o pecado, a ressurreição, o juízo final- que uma indagação direta põe em dúvida a própria base da psicologia teológica. A posição teológica , devemos lembrar, começa no pólo oposto ao pólo psicológico. Ela parte de dogmas, não de dados; parte não da experiência viva, mas cristalizada. A teologia precisa da alma para conferir uma base a seu elaborado sistema de crença sobre a morte, que é parte de seu poder. Não existisse a alma, a teologia provavelmente a inventaria, a fim de justificar as antigas prerrogativas sacerdotais sobre morte.”

Assim é que, a análise psicológica profunda, ou psicologia do inconsciente é um pensar aberto, não redutivo (tal como a psicanálise freudiana ou crenças religiosas) não fechado por nenhum dogma que seja, para que a compreensão possa se dar no ambiente de ocorrência dos mistérios profundos da alma, no fundo daquele labirinto, naquele lugar sombrio onde apenas alguns tipos de seres se aventuram: os loucos (que escorregaram para aí) e daí não saem pôr se tratar, de fato, de um lugar magnífico e passam a literalizar, a atribuir um significado real ao que está sendo visto e vivido; os heróis, pois se metem em aventuras para resgatarem princesas e quimeras, e nem sempre são bem sucedidos nesta empreitada, morrendo na maioria das vezes, no confronto com os monstros que lá residem,  mas se saem, saem renascidos, modificados e maiores pela jornada heróica necessária à individuação, os xamãs (atualmente os psicólogos do inconsciente), que são levados até lá para resgatarem alguma alma que se perdeu e pede socorro ou porque ele mesmo está em plena jornada de descoberta interior e os poetas e artistas que sentem os vapores oriundos destas profundezas  e são capazes de transformas aquelas visões em expressões de beleza inaudita...ou às vezes maldita.

 Muito bem, mas onde é que está todo mundo, todo o resto das pessoas? Elas estão aí em cima, metamorfoseadas em qualquer um dos tipos descritos, ainda que não tenham uma consciência clara disso.

Loucos são todos aqueles que teimam em não dar a medida necessária de uma determinada realidade. Assim é que o apaixonado não tem a medida para perceber a extensão da díade amorosa que o levará ao sacrifício de si mesmo. Assim é com o homicida que julga ver no outro algo que precisa ser destruído para que de alguma forma ele possa continuar vivendo. Assim é com os sacerdotes que entendem que o pecado se espalhou pelo mundo e cortou as vias de acesso com Deus e que só eles conhecem os atalhos do Paraíso.

Heróis são os que se assemelham aos “daimons”, seres intermediários entre os deuses e os loucos mortais comuns. Julgam-se acima de normas e estatutos sociais, e se igualam a deuses e demônios em outras circunstâncias. Estão sempre intoxicados pêlos vapores que vem das profundezas do labirinto, e assim, ficam inflacionados pôr uma visão supra racional da realidade e precisam encetar jornadas que os conduzam ao encontro do si mesmo e que depois retornam para atuar como agentes modificadores de sua sociedade.

Os xamãs/psicólogos são aqueles que, necessariamente, já passaram pêlos dois estágios anteriores e guardam com cuidado, as marcas trazidas daquelas jornadas, sem se jactarem de seus achados e experiências, guardando, isto sim, um silêncio profundo, onde na maioria das vezes, todos estão gritando seus feitos.

Assim é a jornada pelo reino da morte, que é a vida no seu aspecto mais profundo, íntimo e último. Um autor,  uma vez descreveu a morte como o último capítulo da vida, eu digo que a morte é o ÚNICO capítulo da vida. A vida é o que acontece enquanto se morre. 

De que perspectiva podemos então olhar para o suicida?

Qual é o paradigma que nos ajuda na elucidação de tal feito?

A análise médica e criminal esclarece o como. A análise estatística distribui este como geopoliticamente. Tudo sugere que é na análise da alma que poderemos encontrar respostas, senão indagações colocadas de uma vertente nova, a fim de termos uma visão mais coerente do fenômeno que ora tratamos aqui e que não é absolutamente, nem sintoma, nem síndrome, mas apenas um ato possível dentro do ser, e que, no entanto, nos deixa perplexos porque impotentes diante do morrer do outro, como também porque nos relembra de que aquele principio de morte está dentro de nós a todo o momento.

Haveremos que lembrar que sempre somos desconhecidos de nós mesmos, e carregamos dentro de nós uma multidão de “eus” já que o caráter (Xarater = sêlo, grego)está perdido.

Pôr um momento deveríamos deixar de lado qualquer conceituação jurídica, teológica, social, estatística, moral, médica do suicídio e tentarmos vê-lo como parte integrante do existir. De fato, o suicídio é o único problema existencial sério, pois, coloca a morte não na mão do destino ou de deuses, mas na mão do próprio indivíduo. Passa a ser parte integrante da bagagem (do Phortion = mochila, bagagem pessoal, grego) do sujeito vivo e, com certeza, a morte se instala enquanto fenômeno necessário, complementar, no momento mesmo do nascimento.

Deveríamos buscar auxílio no estudo de crenças e religiões comparadas, no estudo dos mitos e dos povos arcaicos ou que vivam hoje, fazendo uso cotidiano e como absolutamente indispensável, de rituais pertencentes à sua tribo, a seus antepassados.

Deveríamos submeter-nos a uma análise profunda, rigorosa, sistemática de nós mesmos e buscarmos ouvir e compreender o grito/sussurro da morte, dos rituais, dos mitos que nos permeiam.

Em sociedades onde existem e são praticados ritos de iniciação das várias etapas da vida e da experiência da alma, não encontramos o suicídio como o encontramos nas sociedades civilizadas. Não encontramos nem mesmo, algumas formas de crimes como conhecemos pôr aqui. Nem mesmo as chamadas doenças mentais

Proponho uma reflexão profunda no sentido de que a ausência de rituais coletivos, rituais tribais, rituais domésticos e individuais ou seja, a ausência de um mito moderno contribuem para o surgimento dos crimes em seus vários aspectos e modalidades. Sugiro mesmo, que o suicídio atual é um salto desesperado da alma ao encontro das regiões onde residem os mistérios que são a ela (alma), tão queridos, indispensáveis e inseparáveis, e não, necessariamente, uma saída de situações conflitantes da vida.

Proponho ainda, uma real investigação dos mitos e rituais como uma necessidade absoluta da alma se organizar até o encontro primordial com seus seres ancestrais, illo tempore.

Na medida que a alma não se situa, não encontra uma ordem, (que é dada através dos rituais, uma reatualização dos mitos), ela promove uma desordem interior e ao redor, promovendo a possibilidade de surgimento do pseudo hierofante, do pseudo arauto dos mistérios, que é substituído em nossa civilização pelo juiz, pela autoridade, principalmente pelos políticos, pelo médico clínico que, não conhecendo os mistérios e nem são, pôr sua vez, iniciados, se limitam tão somente a dar uma resposta, uma ordem (aparente) ao caos, mas não promovem uma significação do fenômeno nem mesmo arranham o seu real entendimento, como esta aí demonstrado pela história caótica dos nossos tempos. Os traficantes, os atuais iniciadores nos mistérios das drogas hoje são os substitutos mais eficientes dos hierofantes (aqueles que anunciam os mistérios, em grego) e os políticos canhestros que se autointitulam os promotores da Ordem e da Moral Social (triste fado).  Estaria aí uma vertente de estudo do porque de tal atrativo fornecido pelas drogas, pelas políticas desvairadas, pelas redes sociais? 

     Eu defino droga, para estes efeitos, tudo aquilo usado para além dos limites necessários e tolerados, desta forma, qualquer compulsão tem uma característica de drogadicção.

Atrevamo-nos, pois, a conhecer profundamente, aquilo que temos conhecido de forma superficial e leviana: A Morte Cotidiana e seu séquito.

  

Marcus Vinicius Moreira de Assumpção

Outono de 1995

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Por que Arte de Morrer com Elegância.


Simples.


Tudo está morrendo.


A vida é o que acontece enquanto se morre.


No momento mesmo que nascemos, temos idade suficiente para morrermos.


Diferentemente do pensamento oriental, para ser mais preciso, do Budismo Tibetano, o pensamento ocidental considera, de uma forma piegas, que apenas velhos e doentes morrem, e tratam a morte como uma grande inimiga.


De fato, a morte permeia todos os eventos vivos. O gerúndio que deveríamos usar seria: estamos morrendo e não, estamos vivendo. Toda a questão se resume em se vamos morrer com elegância ou não.


Sociedades antigas e outras tantas que mantêm vivos rituais iniciáticos, lidam com a morte como a companheira do cotidiano. A morte é vista como inerente e natural à todo organismo que nasceu.

 E esse contraste se acentua quando perguntamos para o homem comum, moderno, o que se opõe à morte ele responde de pronto: a vida..e aqui está o erro; o que se opõe à morte é o nascimento; insisto: A vida é o que acontece enquanto se morre!


Os rituais de iniciação têm por, princípio orientador, promover a morte do iniciado de um determinado estágio de vida para outro posterior. O nome muda, as orientações para o cotidiano mudam, o status pessoal muda, as funções e tarefas mudam; o iniciado já não pertence àquela vida anterior, está morto para ela. E isso interessa à alma e a acalma, dando ordem e sentido.


Esta ansiedade existencial pertence ao homem que não foi iniciado nos grande mistérios da existência, pertence àquele que embota os sentidos com o mundo exterior e olvida as mensagens cotidianas da impermanência. Cria teorias e princípios mirabolantes para burlar esse grande acontecimento. Outras espécies animais têm medo e temor da morte , e assim deveria ser como princípio orientador para nós humanos, apenas permitirmos que a nossa morte nos oriente e nos diga como evitarmos a deselegância de morremos num desastre de automóvel ou atropelados pelo evitável.


Por quatro décadas trabalhando num consultório, escutando os medos e as angústias do homem, e por maior período de tempo trabalhando como socorrista (SAR) e negociando sequestro e suicídio, pude ficar frente a frente com “mementos mori” e podia ver a tragédia se desenrolar em câmera lenta, terrificante. Mas aprendia tremendamente com esse aliado poderoso, naqueles momentos limítrofes, fascinante.


Muitos são os autores que escreveram sobre a morte e o morrer, mas poucos são os que abordam o morrer de uma perspectiva pacífica, calma, destemida. Tudo indica fazer parte da história do homem esse medo atávico, tremendo.


Mas vamos lá continuar tentando ofertar um novo paradigma.


Chamo em meu auxílio alguns autores com os quais ombreio:


“O que é natural à Espécie nem sempre o é para o indivíduo” 

(Jon Donne: Biathanathos: Uma declaração deste Paradoxo ou tese, a saber, que o Auto-Homicídio não é tanto um Pecado Natural, pois que nunca pode ser de outro modo. 1644)


“Não há senão um único problema filosófico sério: é a questão do suicídio. Julgar se a vida vale ou não a pena de ser vivida equivale responder à questão fundamental da filosofia. Todo o resto…dai decorre. Esses são jogos; deve-se primeiro dar uma resposta.” 

(Albert Camus: The Myth of Sisyphus, 1942)


“A despeito das aparências em contrário, o estabelecimento da ordem e da dissolução do que foi estabelecido na realidade estão além do controle humano. O segredo é que apenas o que pode destruir-se a si mesmo está realmente vivo.”

(C.G.Jung: Psychology and Alchemy, 1944)


“Não deveríamos confessar que em nossa atitude civilizada face à morte estamos mais uma vez vivendo psicologicamente além de nossas posses e precisamos corrigir-nos, dando à verdade o que lhe é devido?

Não seria melhor dar à morte, tanto na realidade como em nossos pensamentos, o lugar que a ela pertence de direito e conceder um pouco mais de preeminência àquela atitude inconsciente em relação à morte que até agora tão cuidadosamente suprimimos?…

Si vis vitam, para mortem. Se queremos enfrentar a vida, devemos estar preparados para a morte.”

(Sigmund Freud: Thoughts on War and Dead, 1915)


“Oh! Constrói teu barco da morte, não te demores e constrói com amor e deixa-o entre as mãos de tua alma.”

(D.H.Lawrwnce: Ship of Death, MS. B.)



“Pelo fato de a análise ser uma consideração sobre o viver, ocupa-se com questões de morte. Proporciona a intensa situação humana onde se podem focalizar questões essenciais, tornando-se, assim, um paradigma de vida. Tudo é desnudado dentro de uma pequena sala, entre duas pessoas, em segredo e no vácuo. Este é o lugar dos tópicos sinistros, porque a análise (profunda) é uma atividade mais da mão esquerda que da direita. Ela diz respeito a um tabu e está colocada dentro de um tabu que lhe é próprio.

Objetivo da adaptação social pertence à mão direita, ao aconselhamento consciente; a análise, porém, inclui igualmente a esquerda. Ela revela o homem inferior, no seu aspecto canhestro e sinistro, para quem o suicídio é uma questão real. A análise oferece à mão esquerda uma oportunidade de viver conscientemente sua própria vida, sem ter a mão direita por juiz, encarando o que ela faz. A mão direita não pode nunca conhecer a mão esquerda, apenas interpretá-la e traduzi-la.”

(James Hillman, Suicidio e Alma, 1993)








A REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE

 
A percepção, como vimos, tem sido considerada como a base da cognição e deve ser verídica e pessoal. É um dos requisitos mais elementares para percebermos o mundo e conseguirmos um ajustamento realista a ele.

Este ajustamento realista exige mais do que o reflexo fisiológico dos equipamentos sensoriais; exige satisfazer nossas necessidades, encontrar alguma segurança, explorar as oportunidades para o crescimento e, conseqüentemente, encontrar um sentido satisfatório para a nossa existência.

O conjunto de elementos capazes de nos fazer perceber o mundo de acordo com nossa aptidão pessoal capacita-nos à uma visão mais diferenciada da realidade, oferece uma percepção que ultrapassa àquela simplesmente oferecida pelos órgãos dos sentidos.  

Através dos órgãos dos sentidos os objetos se nos apresentam corporalmente, objetivamente e, nas representações internas elaboradas pelo eu, apresentam-se como imagens. Portanto, a imagem deve ser sempre interior e ter sempre uma concepção individual, porém, apesar de individual, a imagem jamais deve ser emancipada da realidade. Soltando-se da realidade, de forma a produzir um mundo objectual novo e particular, estaremos incorrendo no domínio dos delírios e das alucinações.
Saber porque algumas pessoas se desesperam, se angustiam ou até se suicidam diante de fatos ou vivências que outras pessoas suportariam de forma diferente diz respeito, em parte, às diferenças entre como as coisas são de fato, e o que elas representam para cada um de nós. Portanto, saber um pouco sobre as diferenças entre a realidade externa a nós e a representação interna dessa mesma realidade poderá facilitar a compreensão das diferenças entre o mundo objetivo e o mundo subjetivo.

A nossa cultura registra em Platão (427-374 AC) a primeira reflexão sobre uma nova espécie de realidade experimentada pelo ser humano e que não corresponde exatamente à realidade objetivamente verdadeira: trata-se da realidade psicológica. Santo Agostinho (354-430 d.C.), considerado um grande estimulador dos recentes movimentos existencialista e até da psicanálise, inspirou sua obra na realidade das experiências interiores do ser humano, propondo a idéia de que os sentimentos são dominantes e que o intelecto é seu servo. Em seu livro Confissões, Santo Agostinho foi o primeiro a centralizar-se na introspecção psicológica, sugerindo também, uma completa revisão do pensamento anterior, segundo o qual o raciocínio dedutivo era o único instrumento de constatação da verdade e da realidade (racionalismo). Ele negava, categoricamente, a capacidade do ser humano para encontrar a verdade confiando apenas em suas próprias faculdades.

John Locke (1632-1704), filósofo do século XVII, acreditava também na existência de duas realidades: uma delas conferida pela percepção dos objetos e denominada experiência exterior e uma outra, determinada pela percepção dos sentimentos e desejos, a que chamou de experiência interior. A doutrina de Locke foi muito bem desenvolvida por Berkeley (1685-1753) e por David Hume (1711-1776), os quais concluíram que nenhum conhecimento absoluto é possível, e aquilo que sabemos da realidade é baseado na experiência subjetiva (experiência interior), a qual não reflete necessariamente o quadro verdadeiro do mundo. Wilian James (1842-1910), no século passado, enfatizou a natureza altamente pessoal dos processos de pensamento e o caráter sempre mutável das percepções do mundo, alteradas que são pelo estado subjetivo da pessoa que percebe.

Portanto, já que a concepção da realidade é baseada na experiência subjetiva e, sendo esta capaz de conferir uma natureza altamente pessoal à percepção do mundo e aos pensamentos, então a realidade percebida decorrerá sempre do estado subjetivo do indivíduo. Cada consciência, em particular, integra e totaliza de maneira muito peculiar o seu relacionamento com o mundo. Desta forma, os fatos oferecidos pelo mundo objectual à nossa volta resultarão numa representação única e individual para cada um de nós, e será esta representação que constituirá a realidade particular de cada indivíduo.

As representações são construídas pelas imagens dos objetos e dos fenômenos percebidos nas experiências anteriores e evocadas de modo voluntário ou involuntário. São entendidas, as representações, como um ato de conhecimento conseqüente à reativação de uma lembrança ou de uma imagem mnêmica sem necessidade da presença real do objeto correspondente. Para que este conceito (que é também o conceito de cognição) não fique reduzido ao fenômeno da memória, como a grosso modo poderia parecer, podemos comentá-lo mais amiudemente.

O que existe, em psicodinâmica, ou é o indivíduo ou é o não-indivíduo, em outras palavras, tudo o que não é o sujeito é o objeto. Tudo o que estiver fora de mim será, para mim, o objeto (mundo objectual), em contraposição à “eu mesmo”, que sou o sujeito. Entendemos por imagens dos objetos e dos fenômenos percebidos nas experiências anteriores, toda impressão que o contacto com a realidade pode produzir no indivíduo.


REPRESENTAÇÃO, APERCEPÇÃO E PROCEPÇÃO


Portanto, a representação da realidade, daqui em diante chamada apenas de REPRESENTAÇÃO, transcende significativamente a simples percepção do mundo; é aquilo que o mundo passa a representar para a pessoa depois de nela introjetado ou por ela apreendido. Desta forma, enquanto o caráter da SENSOPERCEPÇÃO é melhor entendido predominantemente a nível do fisiologismo neuro-sensorial, através dos cinco sentidos, a REPRESENTAÇÃO reporta-se predominantemente à subjetividade da realidade, e é revestida de uma tonalidade afetiva particular do indivíduo, portanto, a nível afetivo-psicológico. Uma simples rosa pode ser percebida fisiologicamente através da visão, tato ou olfato, porém, será ricamente representada através do subjetivismo da pessoa. Pode até ser dispensável nesta representação, a presença física do objeto rosa. Da mesma forma, a palavra mãe, por exemplo, que pode ser percebida pela visão, se for escrita ou pela audição, se for falada, terá sua representação interna tocada pela afetividade e jamais será igual entre as pessoas.

O texto de Jung é bastante explicativo: "parece que o consciente flui em torrentes para dentro de nós, vindo de fora sob a forma de percepções sensoriais. Nós vemos, ouvimos, apalpamos e cheiramos o mundo, e assim temos consciência do mundo. Estas percepções sensoriais nos dizem que algo existe fora de nós, mas elas não dizem o que isso seja em si. Esta é tarefa não do processo perceptivo, mas do processo de APERCEPÇÃO. Este último tem uma estrutura altamente complexa. Não que as percepções sensoriais sejam algo simples, mas a sua natureza é menos psíquica do que fisiológica. A complexidade da apercepção, pelo contrário, é psíquica".

Portanto, Jung identifica a REPRESENTAÇÃO da qual falamos, com a APERCEPÇÃO, algo responsável pela significação da coisa ou do que é a coisa em si. Neste caso, se a essência das coisas é determinada mais pelo pensamento e emoção que pela percepção neurológica, esta (a essência das coisas) será sempre pessoal e individual, então o significado essencial das coisas será igualmente pessoal e individual.

Allport é outro autor preocupado com a questão da representação do mundo. Para ele, o que Jung chama de APERCEPÇÃO é tratado com o nome de PROCEPÇÃO: mais um sinônimo para REPRESENTAÇÃO interna. Diz-nos, Allport, que "existir como pessoa significa ultrapassar o verídico e o cultural, bem como desenvolver a própria visão do mundo. Em cada momento cada um de nós realiza, à sua maneira, a sua transação entre o Ego o mundo. Seria impossível enumerar todos os amplos tipos de orientação proceptiva que servem para distinguir os homens entre si. Uns têm uma mentalidade dominante para o passado, outros para o presente e alguns para o futuro. Para alguns o mundo é um lugar hostil, os homens são maus e perigosos; para outros é um palco para folias e brincadeiras".

Mesmos fatos, mesmas situações e mesmos acontecimentos podem ser experimentados por um número infindável de pessoas e representados por infindáveis maneiras. A guerra, por exemplo, onde participam milhares de pessoas, pode representar uma coisa diferente para cada um; embora seja traumática para a expressiva maioria das pessoas que dela participa, será mais traumática para os que neurotizam, demasiadamente traumática para os que psicotizam, apenas desagradável para alguns, e até boa para os vencedores e para os fanáticos, e assim por diante... Enfim, cada personalidade apercebeu-se da guerra de uma maneira completamente diferente.

Perceber a realidade exatamente como ela é tem sido uma tarefa totalmente impossível para o ser humano. 

Nós nos aproximamos variavelmente da realidade, de acordo com nossas paixões, nossos interesses, nossas crenças, nosso acervo cultural, etc. Algumas atitudes mentais favorecem um contacto mais íntimo com a realidade, outras afastam deste contacto. Será muito difícil para uma pessoa perdidamente apaixonada, elaborar um correto julgamento acerca da personalidade de quem ama. Normalmente, nestes casos, a força da paixão turva a avaliação do objeto amado. Da mesma forma, a realidade que um botânico experimenta diante de uma orquídea certamente será diferente da realidade experimentada pelo poeta diante da mesma orquídea. A realidade do indígena é plena de determinados deuses ausentes na nossa, assim como nossos micróbios não participam da realidade deles e assim por diante.

Embora a representação do real seja particular em cada um de nós, como dissemos, esta compreensão do mundo objectual percebido e introjetado deve ser organizada segundo as regras comuns de um mesmo sistema cultural e, desta forma, tornar possível a convivência e a comunicação entre as pessoas de uma mesma cultura. Este sistema sócio-cultural que reconhece o direito da APERCEPÇÃO (ou PROCEPÇÃO, ou REPRESENTAÇÃO) particular de cada um de nós, também estabelece uma determinada faixa de compatibilização entre os indivíduos, onde as diversas maneiras de experimentar e sentir o mundo não comprometa a viabilidade da vida gregária. A esta faixa de congruência sugerimos chamar de CONCORDÂNCIA CULTURAL. Ou seja, um conjunto de valores, normas e modelos capazes de definir um determinado grupo cultuou seja, um conjunto de valores, normas e modelos capazes de definir um determinado grupo cultural e identificar os indivíduos de um mesmo sistema mediante um contacto mais ou menos consensual com certos aspectos da realidade.

Assim sendo, as infinitas variações pessoais na representação da realidade devem, apesar de infinitas, manter-se dentro da concordância cultural para serem consideradas normais. Seria como a infinita variação das impressões digitais. Mesmo diante da infindável variedade entre todas impressões digitais, há alguma concordância entre elas. No momento em que nos defrontamos com impressões digitais formadas por linhas retas e paralelas, ou regularmente quadradas e concêntricas, certamente estaremos diante de impressões digitais anormais.

Bandler afirma haver uma irredutível diferença entre o mundo e a nossa experiência sobre o mesmo. O pensamento, em seu desenvolvimento espontâneo, tem uma necessidade imperiosa de emancipar-se da realidade dos fatos apresentados pelos nossos sentidos. Seria este, o mais importante e brilhante mecanismo responsável por nossa capacidade de abstração e de criação. Sem ele, a espontaneidade e a liberdade estariam irremediavelmente comprometidas. Existir como pessoa significa ultrapassar o verídico e o cultural, desenvolver uma concepção interior do mundo com características próprias, porém, mantendo-se sempre razoavelmente ligado a uma realidade recomendada pela concordância cultural. Como diz o ditado, "A aventura pode ser louca, o aventureiro, porém, necessariamente dever ser lúcido".

A capacidade da pessoa ser ela mesma está em seu esforço (e em seu sucesso) em compatibilizar o seu mundo interior com a realidade externa, controlar seu mundo de forma a viver nele dominando-o de maneira realística. Existe uma parcela de nossa consciência que é emancipada da objetividade exclusiva dos fatos e do mundo dos sentidos, uma parte que nos torna únicos na maneira de ser e sentir o mundo. Existe também, uma outra parcela da consciência que nos identifica a todos como membros de um mesmo sistema sócio-cultural, compatível com uma concordância coletiva e consensual. Allport facilita esta situação ao sugerir a PROCEPÇÃO INDIVIDUAL e a PROCEPÇÃO CULTURAL. Esta última representa o depositário das respostas culturalmente atreladas em nossa personalidade, respostas culturais a determinados fatos vividos. A poligamia, por exemplo, é diferentemente representada pela cultura cristã ocidental e pela cultura islâmica oriental.

Resumindo, podemos dizer que todo ser humano tem uma maneira peculiar e muito pessoal de representar a sua realidade, e faz isso com um arbítrio suficiente para libertá-lo do estreito mundo dos sentidos. Por causa disso ele é capaz de criar, abstrair, pensar além do real e sonhar. Entretanto, mesmo diante desta diversidade representativa, mesmo respeitando sua liberdade ao irreal, está o indivíduo atrelado à concordância cultural de seu meio e, esta, funcionando como uma faixa de tolerância onde deverão situar-se as infindáveis maneiras de representar a realidade.

 

CONSTRUINDO A REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE


A representação da realidade, de fato, repousa na capacidade da pessoa atribuir valores à realidade, isso é o mesmo que construir uma concepção ontológica individual do real. Segundo o filósofo Nicolai Hartmann, existiriam quatro categorias de valores possíveis de atribuir-se à realidade no sentido de construir-se uma representação pessoal da existência. Seriam os valores materiais, vitais, anímicos e espirituais. Cada uma dessas categorias necessitaria da anterior para existir e cada uma delas procura se emancipar da anterior.

   Para estudarmos as Alterações da Representação, como propõe esse capítulo, teríamos que avaliar as eventuais alterações nessas quatro categorias de valorização do real. Sendo quatro as categorias e, portanto, quatro possibilidades de variação, sendo que dentro de cada uma dessas quatro categorias existem mais uma variedade de possíveis alterações, não é fácil (nem lícito) simplesmente listar uma série de condições psicopatológicas onde haveria as tais Alterações da Representação. Temos que pensar em cada uma delas separadamente e, num segundo momento, procurar elaborar uma idéia que integrasse todas as inúmeras variáveis na maneira de valorizarmos o real. Como se vê, trata-se de algo muito complexo.


Categoria Material de Valorizar a Realidade


Com a categoria material nos referimos ao corpo, ao fisiologismo da senso-percepção, ao componente neuro-psico-biológico tão necessário para o contacto primeiro com o mundo que nos rodeia. Construir a realidade a partir do orgânico humano implica na integridade dos órgãos dos sentidos, na integridade das vias nervosas sensitivas, na integridade do Sistema Nervoso Central (SNC) e, principalmente, na capacidade integradora desses estímulos no SNC. Estamos falando das habilidades sensoperceptivas e de suas variações, assunto mais amiudemente estudado em Percepção e Realidade.

A representação da realidade, baseada na categoria material de conhecer o mundo, se dá através da percepção que a pessoa tem anteriormente à realidade consciente, através dos estímulos que apreendemos pela primeira vez, em seguida se dá através da transformação dessa percepção em realidade consciente e, por fim, através das percepções posteriores à realidade consciente, onde entram em ação as capacidades mnêmicas e integradoras do SNC.


Categoria Vital de Valorizar a Realidade


A pessoa aqui e agora pode ser entendida como uma resultância daquilo que ela trouxe ao mundo com aquilo que o mundo lhe deu (fenótipo = genótipo + ambiente). Para a categoria vital de valorizar a realidade interessa aquilo que a pessoa trouxe ao mundo, seu perfil vital. Kurt Schneider se utilizou desse sistema em sua Psicopatologia para apoiar a idéia das Depressões Vitais, dentro das Alterações Depressivas do Humor. Através desses sentimentos vitais a realidade se apresentaria além da situação real e da situação imaginária.

O estado depressivo baseado na situação real seria, por exemplo, uma Depressão Reativa, um Transtorno de Ajustamento com sintomas depressivos ou uma Reação Pós-Traumática ao Estresse. O estado depressivo que valoriza situações imaginárias estaria, por exemplo, na Neurose Depressiva ou, como se prefere atualmente, nos casos de Distimia mais leves ou no Episódio Depressivo Leve. Nos sentimentos vitais se encaixariam as depressões do Episódio Depressivo Grave ou Moderado e as Distimias mais graves (dupla depressão, etc.), onde sobressai o elemento constitucional.

Fossemos adequar essa categoria vital de valorizar a realidade na teoria junguiana, possivelmente encaixaríamos aqui os tipos psicológicos introvertidos. São pessoas que se relacionam centripetamente com o mundo objectual, apreendem os objetos, recebem a realidade mais apaticamente, complacentemente, se deixam impressionar pelo mundo objectual, ou seja, são o contrário dos extrovertidos, centrífugos, que se deslocam e influenciam o mundo objectual.


Categoria Anímica de Valorizar a Realidade


   Considerando o que foi dito antes sobre a pessoa aqui e agora ser entendida como uma resultância daquilo que ela trouxe ao mundo com aquilo que o mundo lhe deu (fenótipo = genótipo + ambiente), para a categoria anímica de valorizar a realidade interessaria a pessoa aqui e agora (fenótipo). O humor, responsável por esse tipo de valorização do real, seria o perfil afetivo atual, o qual guarda em seu bojo elementos constitucionais modelados pelo destino. Vale aqui o ditado segundo o qual "cachorro mordido de cobra tem medo de lingüiça".

   Avaliar a realidade sob o ponto de vista anímico implica em impregná-la com a tonalidade afetiva da personalidade, entendendo-se por personalidade uma constituição dinamicamente atualizada. Enquanto a categoria vital confere uma maneira perene e continuada de valorizar o mundo, a categoria anímica é dinâmica. Exemplo disso são as mudanças de valores durante a vida de uma pessoa.

   Pequenas variações anímicas se dão ao longo dos dias ou das horas, grandes e sólidas variações anímicas se dão ao longo dos anos. Fossemos adequar essa categoria anímica de valorizar a realidade na teoria junguiana, possivelmente estaríamos falando da reversão das fases natural para a fase cultural da pessoa onde, depois de aproximadamente 30 anos para mulheres e 40 para os homens, os valores sofreriam grande e substancial alteração; muito daquilo anteriormente importante deixa de sê-lo e vice-versa.

   Para a psicopatologia interessaria aqui as alterações baseadas nas situações reais e nas situações imaginárias comentadas mais acima.

Categoria Espiritual de Valorizar a Realidade

Avaliação espiritual da realidade é aquela que mais se afasta da objetividade dos fatos, assim como teria tendência em afastar-se das influências sensitivas, vitais e anímicas sobre a realidade. Entretanto, essa irreverência espiritual para com a realidade objetiva não se trata de uma realidade fantasiosa própria do mundo mágico da criança. Trata-se, sim, de um especial encontrar de significações para a vida, para a existência e até para o não existir mais.

   Alguns pensadores atribuem à categoria espiritual de valorizar a realidade os elementos relacionados à Angústia Existencial. Esta será patológica na medida em que se traduz em ansiedade antecipatória à sensação de abismo, solidão, desconhecida... Os sentimentos espirituais são aqueles que tendem para a valorização intelectual, estética, moral e religiosa.

   A categoria espiritual de valorizar a realidade diz respeito ao modo de ser e de vir-a-ser no mundo, bem como avalia a relação entre o ser e a vida. É aqui que se polariza a questão existencial mais importante do ser. Esta base de sustentação existencial deveria proporcionar conforto e bem estar, entretanto, na sua falta ou enfraquecimento, a ansiedade torna-se opressora, a angústia se exacerba e há retorno para categorias inferiores de valorização da realidade. Volta-se a questões afetivas, constitucionais ou exclusivamente materiais.

   O desenvolvimento da valorização espiritual pode, com freqüência, atenuar alterações mórbidas determinadas pelas outras categorias inferiores e, em casos psicopatológicos, pode determinar profundos sentimentos depressivos, tendo como pano de fundo a angústia patológica. Evidentemente trata-se, a valorização espiritual, da maneira mais eficiente para a adaptação do ser ao seu mundo e à sua vida e, ao contrário, nas psicopatias capazes de corromper esta categoria, como é o caso das psicoses, há as mais contundentes desadaptações existenciais.


A REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE

 EMOÇÕES E SENTIMENTOS


   Inicialmente, há necessidade de especificar o que são Emoções e o que são Sentimentos. 

   Emoções são complexos psicofisiológicos que se caracterizam por súbitas rupturas no equilíbrio afetivo de curta duração, com repercussões consecutivas sobre a integridade da consciência e sobre a atividade funcional de diversos órgãos. 

   Sentimentos são estados afetivos mais duráveis, mais atenuados em sua intensidade vivencial que as emoções, geralmente revestidos de ricas e nobres tonalidades intelectuais e morais e não acompanhados, obrigatoriamente, de correspondentes somáticos dignos de nota. Admite-se que os sentimentos possam provir das emoções que lhes são cronologicamente anteriores e com as quais guardam correlações compreensíveis, quanto aos seus conteúdos respectivos.

   As emoções podem ser divididas em: Primárias, Secundárias, Mistas e Espirituais, conforme vão se afastando da sensação e se aproximando da espiritualidade.

Emoções Primárias

São assim chamadas em razão de serem inatas e por estarem diretamente ligadas à vida instintiva, à sobrevivência. Entre elas temos a Emoção de Choque – é a chamada reação catastrófica de Goldstein, caracterizada por espanto ou susto e desencadeadas por situações que representam ameaça evidente. Haverá concomitante contração generalizada dos músculos flexores, sendo possível adotar-se uma atitude regressiva fetal, vasoconstrição periférica, palidez da face e esfriamento das extremidades, com brevíssima parada dos movimentos respiratórios e dos batimentos cardíacos, logo seguida de aceleração compensadora. Pode haver atitude de pânico, ora com tendência à fuga desatinada, ora com imobilidade.

   Temos ainda, entre as primárias, a Emoção Colérica. Acontece como uma atitude dirigida à anulação de um objeto representado como incômodo, contrário à inclinação natural ao prazer. Há, neste caso, reação agressiva contra o estímulo externo responsável pelo desconforto ou contrariedade.

   Finalmente temos a Emoção Afetuosa. Trata-se de uma expressão de tranqüilidade e bem-estar, com tendência à lassidão, seguida de ampliação dos movimentos respiratórios e redução numérica dos batimentos cardíacos, desencadeada em reação ao apreço para com algum objeto ou situação que representa o prazer. É uma inclinação de fusão do eu com o mundo, ou no mundo. Essas são três primárias, integrantes do patrimônio afetivo básico ou original. As duas primeiras se acham a serviço da sobrevivência individual e, portanto, ligadas ao instinto de conservação, ao passo que a última relaciona-se com a inclinação ao prazer.

Emoções Secundárias

São estados afetivos de estrutura e conteúdos mais complexos que as primárias. Na realidade as Emoções Secundárias, embora levem o nome de "emoções", já se constituem em Sentimentos Sensoriais e que se apresentam, sob duas formas especiais.

Os Estados Afetivos Sensoriais, que correspondentes aos sentimentos sensoriais intimamente relacionados às sensações de prazer e dor, as quais têm por sede ou ponto de partida a nossa sensibilidade corporal. Os Estados Afetivos Sensoriais acabam proporcionando estados afetivos agradáveis e desagradáveis.

   Mas não há dúvida de que a abrangência dos estados afetivos agradáveis e desagradáveis é, na realidade, bem mais ampla que as sensações do prazer e da dor, na acepção sensorial. Os Estados Afetivos Sensoriais já implicam numa representação mais íntima de prazer ou desprazer. O amargo, por exemplo, é desagradável, sem ser necessariamente doloroso, o mesmo podendo suceder com as sensações de fome, calor, frio, sede, etc. Aspirar um fino perfume, ouvir um belo trecho melódico ou contemplar deslumbrante panorama são representações agradáveis, sem que constituam prazeres somáticos propriamente ditos, isto é, mais ou menos localizáveis em algumas partes do nosso corpo.

   Em segundo lugar, as Emoções Secundárias comportam os Estados Afetivos Vitais. Correspondem aos sentimentos vitais de Scheler, e compreendem aquilo que se experimenta como mal-estar, bem-estar, animação, desanimação, etc. Embora sejam representados por estímulos corporais bem pronunciados, são diferentes dos sensoriais por não estarem ligados a excitações localizadas em partes do corpo. Assim, pois, os Estados Afetivos Vitais são atitudes internas, positivas ou negativas, relacionadas a sensações vagas e difusas. São sentimentos orgânicos que emprestam coloridos específicos a determinados estados orgânicos.

   Os Estados Afetivos Vitais e Sensoriais podem se alterar nas atitudes neuróticas, onde as sensações orgânicas sofrem a influência dos afetos, que acabam por se converter numa linguagem especial do indivíduo para si mesmo e para os outros. É o que se verifica nos hipocondríacos, nos histéricos, etc. O mesmo ocorre em certos estados de êxtase místico e no faquirismo, por exemplo.

Emoções Mistas

   Emoções mistas são aquelas que envolvem mesclas de estados afetivos internos contrastantes e já se distanciam do sensível orgânico. Por estados afetivos contrastantes queremos dizer um "conflito emocional" consciente, com maior ou menor repercussão na conduta individual. Estas se compõem de estados afetivos de conteúdos vários e opostos, sem sistematização específica, caracterizando uma representação da realidade sob o ponto de vista da angústia existencial ou, algumas vezes, da angústia patológica.

Sentimentos Anímicos e Espirituais

   De acordo com a terminologia utilizada por Max Scheler, sentimentos anímicos são estados afetivos concebidos como qualidades do eu e dotados de intencionalidade do eu para com o objeto, ou seja, do eu em relação ao mundo dos valores. São exemplos de sentimentos anímicos a tristeza e a alegria, o amor e o ódio, a felicidade e o desespero, etc., referem-se a acontecimentos, objetos, coisas, pessoas, enquanto veículos de valor, positivo ou negativo.

   Os sentimentos espirituais tendem para os valores absolutos, tais como os valores intelectuais, estéticos, morais, religiosos, não mais concebidos exclusivamente como qualidades do eu, portanto, não mais inerentes à estruturação do sistema de valores relativos ou individuais.


Das Emoções aos Sentimentos


   Os sentimentos são atenuados em sua intensidade vivencial e em seus concomitantes fisiológicos (viscerais, vasomotores, secretórios, etc.) em comparação à exuberância das emoções. Intimamente entrelaçados com as sensações e as emoções, na dinâmica da vida psíquica total, os sentimentos se mostram muito mais duradouros, além de infinitamente mais numerosos e variados que os estados afetivos básicos dos quais se originam. Assim, da emoção primária de choque-pânico, provém emoções mistas (espanto, susto, terror. . .) e, destas, os sentimentos de insegurança, desconfiança, receio, medo, etc.; da emoção colérica, resultam vivências emocionais impulsivo-agressivas, bem como sentimentos de vingança, ódio, rancor, crueldade . . . ; da emoção afetuosa, originam-se reações emocionais de envaidecimento e auto-estima e sentimentos de simpatia, cordialidade, compaixão, amizade, amor, sob todas as suas formas (de pessoa a pessoa, à família, à pátria, a Deus, à Ciência, à arte, à liberdade, à humanidade, etc.); enfim, das emoções secundárias, de desprazer e mal-estar, de um lado, e de prazer e bem-estar, do outro, também, derivam, respectivamente, sentimentos de pesar, tristeza, desgosto, asco, aversão, desespero. . . ; bem como os sentimentos de júbilo, alegria, esperança, satisfação, felicidade, etc.

   A afirmação juvenil da sexualidade e o processo de integração social do adolescente proporcionam rejeição de muitos valores instituídos na infância, levando à adoção e introspecção de valores novos, que alteram profundamente o sistema referencial do indivíduo (sistema de valores) ampliando e enriquecendo, cada vez mais, a sua vida afetiva e, por fim, favorecendo o desenvolvimento dos chamados sentimentos espirituais. Estes últimos imprimem a feição final ao quadro afetivo geral da psique humana e constituem, a bem dizer, a principal característica de nossa espécie. Esses sentimentos (valores) espirituais permitem ao homem, com exclusividade, elevar-se continuamente no plano das idéias, dos juízos e dos atos e, com isso, caracterizar a totalidade de seu comportamento social. O característico dessa categoria de sistema de valores espirituais é que eles sempre se referem, não propriamente a pessoas, coisas, objetos, portadores de valores intrínsecos, mas à qualidade do que é ou não é valioso, do que é verdadeiro ou o falso, belo ou o feio, bom ou o mau, sagrado ou o profano. ..

   A REPRESENTAÇÃO da realidade, então, determinará a significação das coisas no âmbito de cada camada afetiva (Primárias, Secundárias, Mistas e Espirituais). Isso não quer dizer que essas categorias sejam herméticas ou estanques. Elas funcionam de maneira integrada e, por causa dessa integração, os conteúdos tímicos provenientes das camadas sensorial e vital, podem alcançar as camadas mais espirituais e vice-versa. Nada, em nosso mundo interior, se encontra em estado estático, de isolamento e de pureza elementar, mas sim, tudo se encontra de forma dinâmica e integrada.


REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE

EMOÇÕES


O fisiologista Cannon pesquisava sobre as finalidades adaptativas das emoções mediante modificações somáticas. Ao contrário, seu colega Pierre Janet não atribuía às emoções as atitudes e condutas adaptativas, mas sim aos sentimentos. Ao seu ver, as emoções desorganizariam a conduta. O terror-pânico (emoção), por exemplo, compromete profundamente todas as defesas racionais possibilitadas pelo temor-receio-prudência dos sentimentos. Apesar disso, Janet reconhecia que algumas emoções possuem, de fato, finalidades adaptativas. Neste caso podemos supor que algumas emoções podem corromper a REPRESENTAÇÃO da realidade mais do que os sentimentos.

   Jean Paul Sartre sustenta a concepção de que as emoções representam uma resposta a determinadas situações e são, por isso, dotadas de sentido, pouco importando, a seu ver, se tal resposta é inadequada, ilógica, contraditória ou absurda, pois a emoção não tem por objetivo a real adaptação do ser vivo às circunstâncias, podendo inclusive ser nociva e até mesmo fatal à sua existência. Assim, o desmaio ante um perigo iminente será um paroxismo emocional que acaba privando o indivíduo de toda e qualquer possibilidade de defesa racional. Trata-se aí, no dizer de Sartre, de um recurso mágico mediante ao qual, na impossibilidade de eliminar o perigo, suprime a consciência de sua presença e de sua significação no indivíduo. É, portanto, uma emoção que, não apenas altera, mas, suprime substancialmente e contundentemente a REPRESENTAÇÃO da realidade.

   Ainda sobre as emoções de pânico-terror, poderíamos dizer que elas conduzem à sintomatologia da Síndrome do Pânico por valorizar indevidamente como ameaçadora uma realidade originariamente não hostil, da mesma forma como a emoção de medo fóbico faz representar como estressante estímulos essencialmente inofensivos. Esses exemplos mostram o prejuízo adaptativo de determinadas emoções.

   Tendo em vista a colocação sartreniana de que as emoções representariam uma resposta a determinadas situações, podemos supor, por exemplo, que as emoções de medo fóbico, ansiedade exagerada, pânico e terror seriam, pois, respostas à determinadas situações. E que situações seriam estas? Talvez pudéssemos pensar em situações internas à pessoa, situações afetivas capazes de propor emoções tal como se tratasse de situações externas. Conflitos e alterações afetivas podem se encaixar nessas condições internas.


Representação da Realidade

Inclinações e Paixões


   As inclinações são movimentos afetivos involuntários, duráveis, contínuos, persistentes, em direção a determinado objeto. Esses movimentos de apetência seletiva emergem de disposições extraconscientes, isto é, das tendências instintivo-afetivas latentes, as quais lhes dão força, sentido e unidade dinâmica, com ou sem repercussões sobre a motilidade e a conduta. São diferentes das ações impulsivas incoercíveis e das atividades instintivas brutas por comportarem, as inclinações, certa representação na consciência e por suportarem mais eficazmente esforços de contenção de suas manifestações.

   O termo paixão, como se fosse o outro lado da moeda das inclinações, designa um estado afetivo mais agudo, absorvente e tiranizante que estas. A paixão polariza a vida psíquica do indivíduo na direção de um objeto único, o qual passa a monopolizar os pensamentos e as ações, com exclusão ou detrimento de tudo mais. As inclinações e as paixões procedem da mesma esfera de tendências instintivo-afetivas, que formam a base da organização biopsicológica do ser humano.

   Desde Aristóteles, vários pensadores ressaltaram o caráter de passividade e submissão da pessoa às suas paixões e inclinações, quase sempre tidas por nocivas ou perigosas à razão, e contra as quais pouco se podia apelar através do autodomínio individual. Em oposição a isso, Santo Tomás encarecia a necessidade e possibilidade do ser humano derivar suas paixões para objetos bons e dignos. 


Não obstante a opinião de Santo Tomás, Spinoza, Rousseau, Montaigne também viam nas paixões, apetites cegos e indomáveis, que entravam e perturbavam o entendimento, a reflexão, o raciocínio e o julgamento, arrastando o homem à violência, aos desregramentos, fanatismos, sectarismos e despotismos, com todas as suas conseqüências.


   Depois das considerações mais variadas sobre esse tema, provenientes de filósofos, pensadores e romancistas, a psicologia contemporânea consignou alguns avanços importantes, no que se refere à sistemática das inclinações e paixões. Sabemos hoje, com efeito, que as inclinações e paixões não são previamente boas ou más em si mesmas, mas sim, em função das deformações e desequilíbrios que possam produzir em nossa mente. Evidentemente que, tanto as inclinações quanto as paixões corrompem a REPRESENTAÇÃO da realidade. São maneiras totalmente deformadas de considerar o real.


Representação da Realidade

Empatia e Ressonância Afetiva


   As Ressonâncias Afetivas, segundo Nobre de Melo, compreendem as várias modalidades de empatia, termo e conceito introduzidos em Psicologia por Theodor Lipps, de excepcional relevância por constituir valiosa fonte de conhecimento intuitivo e REPRESENTAÇÃO da realidade.

   Em seu mais amplo sentido, a empatia é um processo que se manifesta como uma intencionalidade objetiva do eu no não-eu, ou do sujeito sobre o objeto sob a forma de identificação emocional, fusão afetiva, interação anímica e espiritual. Este processo, tanto se refere a coisas, objetos, experiência sensível no mundo, na natureza e na Arte, assim como às atividades, emoções e sentimentos do eu alheio.

   Goethe, em suas Afinidades Eletivas, enaltece a ação benéfica que a esmeralda exerce sobre nós, cuja cor maravilhosa tanto agrada à vista, e exalta o poder curativo da beleza humana, cuja contemplação nos torna isentos de todo mal, caracteriza com isso, nada mais que uma forma de objetivação empática de seus próprios sentimentos no mundo exterior. Assim sendo, então, a empatia também pode influenciar na e REPRESENTAÇÃO da realidade. A empatia é como uma projeção dos sentimentos e estados de ânimo nas coisas em torno, tal como faziam os povos primitivos animando a natureza com deuses e duendes, ou os artistas e poetas com a linguagem literária adornada de imagens e expressões simbólicas.

   A empatia é também reflexo de uma riqueza de nossa vida interior, objetivada intencionalmente na natureza que nos envolve, tal como quando falamos, simbolicamente, do "ar altaneiro e desdenhoso de uma palmeira que se ergue, esguia e solitária, no topo da montanha", ou quando falamos dos "açoites do vendaval, impetuoso e iracundo"; ou dos "arremessos do oceano, selvagem e apaixonado"; ou ainda de "vales tranqüilos e amenos", de "árvores amigas", "regatos sussurrantes”. . . e tantas outras expressões com as quais projetamos, enfim, na natureza circundante, os sentimentos que povoam o nosso mundo interior.

   Uma forma de objetivação empática é aquela caracterizada por participação ou fusão afetiva. Trata-se aqui de uma variedade passível de observação até mesmo entre os animais de vida gregária. Na espécie humana, citam-se como exemplos da fusão afetiva, a identificação empática dos membros de um clã, uma tribo, uma família, entidade de classe, etc. Trata-se, por exemplo, da fusão da mãe com o filho ou da criança com os personagens fictícios e objetos inanimados do mundo infantil, do adolescente com os heróis do romance. Obviamente que, com a empatia, há interferência sobre a REPRESENTAÇÃO da realidade.

   Algo parecido é a chamada empatia estética. Por empatia estética entendemos tudo o que concerne à indecifrável relação afetiva que a obra de arte estabelece entre o criador e o contemplador. Como qualquer outra modalidade de empatia, esta pode ser positiva ou negativa e só no primeiro caso podemos falar em coafinação empática. No segundo caso haverá discordância entre o emitido e o recebido. É o tipo ou modo de empatia que decide, em última instância, se o dito objeto artístico é esteticamente valioso ou não.


A REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE

ESTADOS AFETIVOS COMPLEXOS


Verificaremos aqui os estados afetivos complexos capazes de influenciar na REPRESENTAÇÃO da realidade. Pode-se entender como estados afetivos complexos, certos fenômenos tímicos que ora se dão como puros estados de consciência sem conteúdos intelectuais, como é o caso dos sentimentos do eu, de Karl Jaspers, ora se apresentam aderidos a realidade externa. Atrelados à realidade externa, porém imaginária, esses estados afetivos seriam os sentimentos fantásticos de Jaspers e, referentes à realidade externa verdadeira, seriam os sentimentos de representação e de juízo a que correspondem, respectivamente, os sentimentos estéticos e os de valor.

   Alguns desses estados afetivos complexos podem ser aqui referidos. É o caso, por exemplo, do pesar. Um desprazer intenso, de motivação moral ou psíquica, com acentuada e clara agudização da consciência do eu. É também o caso do sentimento de tristeza simples, ao qual pode se somar a perda da impulsividade reacional, uma atitude de desalento, uma entrega passiva e resignada ao sofrimento. Temos também o desgosto, que é uma variedade de pesar onde se vislumbra algo de revolta contra alguma sensação de injustiça. O desgosto trará mais sofrimento quando à ele se alia a perda total de qualquer esperança de reparação. Nesses casos teremos o sentimento de desespero.

   Outro estado afetivo complexo é a repugnância, um estado onde o sentimento de repulsa e aversão se objetiva sob a forma de nojo ou asco, podendo exteriorizar-se com ou sem reação nauseosa concomitante. O mesmo se pode dizer dos conteúdos vivenciais da alegria, sempre ruidosa e comunicativa, como que a reclamar a compartilhação alheia com seu transbordamento. Ainda temos o sentimento de júbilo, o qual pressupõe um acontecimento motivador, e onde se entrevê certa ponta de orgulho, com secreto desejo ser distinguido e festejado. Há também o otimismo, uma atitude intelectual de bom humor e a satisfação, sempre discreta e silenciosa, por mais intensa e duradoura. Há também o estado afetivo do ressentimento, um sentimento que pode brotar do flagrante desacordo entre o que poderia ter sido e que não foi. Aqui, a nota dominante é dada pela tendência à ruminação masoquista do que tenha sido vivenciado como injusto, deprimente e humilhante.

   Finalmente, como estado afetivo complexo capaz de interferir na REPRESENTAÇÃO da realidade, temos a angústia, apanágio do homem como espírito. Esta decorre da consciência que o homem adquire de sua liberdade, ao passar da inocência à culpa, segundo o existencialismo. A liberdade e a possibilidade geram a angústia existencial, pelo que não é mas poderia ser, colocando-se o futuro como realidade ameaçadora.

   Embora não seja de todo necessário aqui distinguir, fenomenologicamente, a angústia, o medo e a ansiedade, podemos refletir brevemente sobre isso. Diferenciar o medo da angústia é tarefa relativamente fácil. O medo normal tem sempre um motivo conhecido e um objeto consciente, reais e plausíveis, o que não sucede na angústia, que surge sem motivo justificável e sem conteúdo objetivo. Na ansiedade há mais um sentimento de previsão ou antecipação de um perigo imaginário e desconhecido. Entretanto, as manifestações somáticas do medo, da ansiedade e da angústia são, na verdade, aparentemente semelhantes.

   Recorrendo à estratificação das categorias de avaliar-se a realidade vistas no início desse capítulo, podemos deduzir que o medo é um estado afetivo que se origina nas camadas dos chamados sentimentos sensoriais e dos sentimentos anímicos, é uma emoção primária (ver acima) e além disso, é suscitado pela presença de uma situação ameaçadora real, que ponha em risco imediato ou mediato a integridade física ou moral do indivíduo, como dissemos. 

O medo é um fenômeno psíquico, diretamente vinculado ao instinto de conservação individual e, portanto, pertencente tanto ao homem como aos animais. A ansiedade patológica é sempre um medo mórbido e que se origina, sem motivação conhecida, na esfera dos sentimentos vitais.

   A angústia existencial, propriamente dita, emana da esfera dos sentimentos espirituais (ver categorias de avaliar-se a realidade) e é, por isso, específica e exclusiva do ser humano. Os animais são suscetíveis de medo e de ansiedade, mas não de angústia existencial, a qual pressupõe a consciência de estar-no-mundo, de existir no tempo, de ser-para-a-morte.